domingo, 28 de fevereiro de 2016

Não sou mais a da fotografia

  Já desaguei toda a mágoa, já enterrei as armas, só mantenho o que ainda me protege, do ataque não faço questão; me empenhei em secar o chão molhado de água e sal; implantei um governo na minha vida e tratei de depô-lo logo em seguida -  agora vivo a anarquia. Já invoquei os deuses, bradei meus mantras, dispensei testemunhas, cortei o cabelo e desatei os laços. Arranquei a fitinha do Senhor do Bonfim do punho, já não acredito em mágicas; fiz o café forte, ao meu gosto e só; consertei a maçaneta; troquei a resistência  do chuveiro e achei bem fácil, sem choques, desliguei a chave certa dessa vez. Rasguei o mapa astral, que encomendei pela internet e só consultei as previsões do clima para a semana, daqui, Madri e Budapeste, as duas últimas talvez eu conheça até o próximo sábado.

  Comecei um curso de mandarim e desisti do inglês, por hora. Visitei minha amiga da escola, a quem você não conheceu, ela teve uma filha há quase um ano e a menina me sorriu. Não tenho visto as mesmas pessoas, fiz novos amigos e tenho reencontrado antigos, acho que faz parte do afastamento me reconhecer em coisas e pessoas que não compartilhamos. 

  Passeei algumas vezes com o cachorro da vizinha e fingi, por um tempo, que eu era a sua dona, acho que já posso ter um outro depois que você levou o que eu fingia que era meu embora. Não sei precisar quando, mas há algum tempo eu larguei atrás da porta um coração vazio de esperança e cheio de raiva por não ter conseguido continuar. Então eu comecei a regar as plantas com mais frequência e elas voltaram a ganhar cor, assisti aos programas sem mudar tanto de canal, deixei de consultar o celular a cada minuto, de responder as mensagens na hora, de roer as unhas, de ter pressa nas filas e de querer atravessar antes do sinal abrir para mim e acho que cada uma das pequenas mudanças me deixaram menos cansada e ansiosa.

  Voltei a dormir mais de 6 horas por noite, de lembrar dos sonhos na manhã seguinte e ficar pensando neles, na cama, antes de me levantar. Tenho sonhado muito. E, principalmente, tenho podido ficar calada, gosto tanto quando não preciso falar. Não tenho olhado para porta esperando alguém chegar, sento no sofá em frente a ela e, na maioria das vezes, me imagino saindo. Mudar a perspectiva da ação, do agente e da direção me parece curativo. Não quero mais o peixes no aquário, vou ficar com estes últimos e, um dia, quando não tiver mais peixes, me desfaço dele. Claustrofóbico isto de manter peixes num quadrado, podia ter levado-os e deixado o cachorro. Última vez que falarei do cachorro, você sabe que esta foi a mágoa mais difícil de me desprender?

  Conheci alguém na semana passada e, ainda, não tive coragem de dizer que escrevo. Não quero que ele me conheça antes de eu conhecê-lo; acho que tenho estado mais cautelosa, medrosa, não sei. Ele não tem cachorros e já achei um bom sinal. Não falarei do cachorro, da porta, do chuveiro, dos peixes e espero mesmo que ele não leia isto. Não sei como evitar ainda, mas aprenderei.

  Sozinha fiz mais do que faríamos juntos, porque eu pensava e fazia, não esperei resposta, nem de palavra, nem de olhos. Fui sendo. E ser é tão completo, por que nunca ninguém me disse isso antes? Por que não avisaram de que eu gostaria tanto de ser, que essa era a melhor parte, mais do que o sono, os silêncios e a visão da minha saída pela porta. Da próxima vez não abrirei mão de ser, nem ficarei com raiva se alguém se ofender com essa minha insistência de existir e só.

  Sabe aquela foto nossa que você levou? Então, eu não sou mais a que sorri do seu lado direito, ainda sorrio, mas não mais do seu lado nem do mesmo jeito. As fotografias não dizem quem somos, elas falam de um tempo, de uma pessoa que muda na hora seguinte do instante congelado. Quando olhamos para uma foto, seja de que tempo for, a pessoa não é mais aquela, é só uma lembrança, uma memória de alguém que já passou. Um álbum de imagens é um relicário de mortos: de tempos, sentimentos, sorrisos e sonhos que já não estão mais ali.  O que eu queria dizer mesmo é que o cachorro sempre foi seu.



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