Sigo o itinerário acostumado, mas levo um pouco do jovem homem comigo: seu desejo de consumo se realizando às 7 da manhã, as escolhas que poderia fazer, as possibilidades que as ruas oferecem, pois, possivelmente, ele saia de casa todos os dias com a imprevisibilidade do que irá trazer consigo. E, penso na capacidade que temos de validar ou descartar algo, porque o tempo requisita, porque os espaços modificam. O sofá pago a longas prestações agora é analisado pelo homem, um porta-retratos é colocado na sacola, algumas pastas são abertas, segredos talvez sejam violados, tudo isto pelas mãos solitárias de um rapaz que conhece as memórias abandonadas de uma cidade, que talvez nem o reconheça.
A música dos meus fones para e eu escuto o homem na rua deslizar as mãos por objetos que talvez, um dia, fossem muito importantes para o dono, mas que agora é lixo, descarte, está sujeito a profanação de outro alguém qualquer. A importância de algo é mesmo cambiante; nada dura o tempo de um olhar já cansado, sedento de novidade e frescor. Há uma incapacidade persistente em olharmos para uma coisa e não vermos só a coisa, mas revisitarmos os sentimentos que nos fizeram amá-la. Alguém perde suas memórias e um homem de boné as resgata, a seu jeito, sob a sua ótica.
Durante a corrida, avisto o homem vindo com as suas escolhas, na avenida cheia de cinza e carros, ele segue em sentido contrário ao fluxo e, pelo acostamento, empurra um carrinho de plástico colorido, com uma boneca sem um dos braços. A sacola não está tão cheia, mas tem sorriso e presente para uma filha talvez. Passo por ele e vejo a delicadeza com a qual ele segura o carrinho e a fantasia de uma filha, talvez já traga no brinquedo aquela outra que o aguarda em casa.
O valor das coisas é mesmo muito fluido e variado: hoje é, amanhã não mais. Mas a sua direção quase sempre aponta para um simplicidade inexplicável, num objeto de segunda mão, abandonado na rua; num regalo singelo bem intencionado; num gesto, palavra ou acolhimento inesperados. Ou, como quando meu pai e eu caminhávamos pela rua e ele passava a mão sobre os meus ombros e me puxava para o lado de dentro da calçada; a cena é prosaica, costumeira, mas era o amor maior do mundo e eu já sabia disso. O jovem rapaz me devolveu a cena antiga e repetida dezenas de vezes. Trazer para perto de si o que se ama, proteger e revisitar o sentimento primeiro é que dá o real valor ao que não poderemos nunca abandonar na calçada.
Um comentário:
<3
besas
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