E na visão que se repetia sempre, abriria a porta com muito jeito, a cada volta na chave, o corpo esquentaria um pouco mais, não era incômodo, era aconchego, era a proximidade com uma decisão muito acalentada, era o calor da vida abrasadora que circularia nas entranhas e daria força e coragem. Depois que a porta se abrisse, entraria suave, mas pisadas firmes, com resolução e caixa de fósforos nas mãos, abandonando todos os medos. O litro do inflamável ficaria à porta, à espera, sem pressa de arder e instalado como um marcador da volta. Seguiria lenta pela casa, lívida, se despendido sem lágrimas do que diziam ser dela, mas ela rejeitava a condição de permanente; de pronta. Perscrutaria cada canto, assistindo uma existência que ruiria, no lugar dela. Abriria portas, gavetas, descobriria os esconderijos que ela sorrateiramente colecionava - ali sim, talvez tivesse um pouco mais dela - para facilitar o trabalho seguinte, ela areja o ambiente. Saboreia lentamente a plenitude do abandono escolhido.
As fotos, os livros - aquele com a página dobrada que nunca terminaria, não aquele - os copos sujos na pia, os lavados na bancada, as garrafas de bebida pelo meio ou fim - quase nenhuma permaneceu intacta - as três plantas na cozinha - uma espada de São Jorge e duas bromélias - o revisteiro de palha, as três cadeiras altas, o Buda, o São Francisco e o quadro de Shiva na parede do corredor. As quatro ou cinco cenas que se revezavam a cada porta aberta - uns inícios, uns finais, algumas incompreensões. Tudo poderia ser vencido, o fogo era a cura, o remédio, as horas economizadas com o analista, as centenas de noites insones; as chamas eram a libertação, enfim.
Depois da passagem pela casa inteira, voltaria ao combustível repousado na entrada e molharia cada parte revisitada, como num ritual: lento, paciente e cheio de devoção. O líquido que caía sobre cada coisa - objeto ou lembrança - era a uma definição, um fim, o passo para o outro rumo, novo, sem vestígios impregnados do abandonado ou possibilidade de recuo. Acenderia o fósforo, largá-lo-ia na trilha molhada, preparada para o término.
O fogo se alastraria por cada memória, cada visão equivocada de si, fundamentada nos olhares dos outros. Éramos nós e as nossas sortes perdidas, talvez valesse um resgate improvisado de uma só coisa da casa, algum patuá, uma imagem, um livro, um nada para dar mais materialidade à despedida e o fogo queimando atrás. Um caminho a ser descoberto, limpo, livre dos excessos, logo mais adiante.
Não era escolha, não era a intenção de uma justiça ilícita, de uma resposta irracional. Era fogo ardendo, saltando de dentro do corpo, saindo das mãos, aterrissando no concreto e destruindo as marcas de um não-ser. O fogo queimando atrás e a chave na porta rodando cada volta, com a suavidade de quem acaba de nascer. Chegar ao mundo depois do fogo, pela desordem da correria atrás, pela confusão da fumaça, pelo calor da brasa; agora é um início, aquele sem nome, sem os enredos muito conhecidos. A incendiária tem no fogo o seu renascimento cumprido.
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