segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Incendiária

  Não era arrependimento disfarçado, não era um projeto de vingança pelo irrealizado, nem era desejo de  fuga. Mas uma visão, ainda incompleta, de recomeço sem muita carga das histórias passadas, sem a sombra das falhas ou dos sucessos que agora pareciam sem sentido, sem o olhar muito arraigado dos outros que diziam o que ela era e ela acreditava que era aquilo que viam. Era um sonho de partir sem nome que soubessem, sem os trejeitos e as respostas que esperavam que partissem dela. E se não esperavam, podia criar novos jeitos. Reinventar o que era e não podia saber.

  E na visão que se repetia sempre, abriria a porta com muito jeito, a cada volta na chave, o corpo esquentaria um pouco mais, não era incômodo, era aconchego, era a proximidade com uma decisão muito acalentada, era o calor da vida abrasadora que circularia nas entranhas e daria força e coragem. Depois que a porta se abrisse, entraria suave, mas pisadas firmes, com resolução e caixa de fósforos nas mãos, abandonando todos os medos. O  litro do inflamável  ficaria à porta, à espera, sem pressa de arder e instalado como um marcador da volta. Seguiria lenta pela casa, lívida, se despendido sem lágrimas do que diziam ser dela, mas ela rejeitava a condição de permanente; de pronta. Perscrutaria cada canto, assistindo uma existência que ruiria, no lugar dela. Abriria portas, gavetas, descobriria os esconderijos que ela sorrateiramente colecionava - ali sim, talvez tivesse um pouco mais dela - para facilitar o trabalho seguinte, ela areja o ambiente. Saboreia lentamente a plenitude do abandono escolhido.

  As fotos, os livros - aquele com a página dobrada que nunca terminaria, não aquele - os copos sujos na pia, os lavados na bancada, as garrafas de bebida pelo meio ou fim - quase nenhuma permaneceu intacta - as três plantas na cozinha - uma espada de São Jorge e duas bromélias - o revisteiro de palha, as três cadeiras altas, o Buda, o São Francisco e o quadro de Shiva na parede do corredor. As quatro ou cinco cenas que se revezavam a cada porta aberta - uns inícios, uns finais, algumas incompreensões. Tudo poderia ser vencido, o fogo era a cura, o remédio, as horas economizadas com o analista, as centenas de noites insones; as chamas eram a libertação, enfim.

  Depois da passagem pela  casa inteira, voltaria ao combustível repousado na entrada e molharia cada parte revisitada, como num ritual: lento, paciente e cheio de devoção. O líquido que caía sobre cada coisa - objeto ou lembrança - era a uma definição, um fim, o passo para o outro rumo, novo, sem vestígios impregnados do abandonado ou possibilidade de recuo. Acenderia o fósforo, largá-lo-ia na trilha molhada, preparada para o término.

  O  fogo se alastraria por cada memória, cada visão equivocada de si, fundamentada nos olhares dos outros. Éramos nós e as nossas sortes perdidas, talvez valesse um resgate improvisado de uma só coisa da casa, algum patuá, uma imagem, um livro, um nada para dar mais materialidade à despedida e o fogo queimando atrás. Um caminho a ser descoberto, limpo, livre dos excessos, logo mais adiante.
 
  Não era escolha, não era a intenção de uma justiça ilícita, de uma resposta irracional.  Era fogo ardendo, saltando de dentro  do corpo, saindo das mãos, aterrissando no concreto e destruindo as marcas de um  não-ser. O fogo queimando atrás e a chave na porta rodando cada volta, com a suavidade de quem acaba de nascer. Chegar ao mundo depois do fogo, pela desordem da correria atrás, pela confusão da fumaça, pelo calor da brasa; agora é um início, aquele sem nome, sem os enredos muito conhecidos. A incendiária tem no fogo o seu renascimento cumprido.





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