sábado, 26 de março de 2016

Dava para gostar sem mágica

  Dava para lembrar do jardim, das quatro ou cinco rosas e um arbusto de hortênsias, num canteiro do lado
da porta que ninguém usava. Dava para lembrar que depois de uma dezena de visitas à casa eu ainda não entendia como as flores resistiam a um lugar tão rústico, de poeira muito vermelha e seco. Eu ia sempre com o sol a pino, dava impressão que nunca chovia lá. Como um chão  tão seco, meu Deus? Dava para morrer de sede numa mirada. Mas se olhasse só para as flores, de repente, esquecia tudo ao redor e eram só bonitas, como as flores de qualquer outro lugar. Mas os olhos atravessavam as cores, os muitos verdes e encontravam as rachaduras largas nas paredes da casa, a janela da sala em que ninguém nunca chegou - não enquanto eu estivesse lá -  as cortinas, únicas intactas ao tempo, o telhado muito antigo, resistente e também empoeirado. Só as flores não tinham poeira alguma.

  A casa, o quintal, as plantações, as cercas,  as frutas caídas aos pés das árvores, as fissuras profundas no solo, nada fazia parte do meu universo cotidiano, mas mesmo que eu o visitasse raríssimas vezes, eu nunca esquecia de cada coisa, especialmente das flores; para sempre lá. Só um homem velho cuidava de tudo e eu desconfiava sempre da sua habilidade com aquelas flores, mas se não fosse ele o cuidador, quem mais? Nunca vi vizinhos, nunca vi humano qualquer que não nós, os visitantes e ele, o homem velho, calado e de mistério azul nos olhos.

  Dava para saber do seu trabalho, pelas mãos: grossas, cheias de calos e unhas de terra. Onde caberia nele delicadeza e suavidade no trato com as flores?  Dava para imaginar sua solidão na roupa sempre amassada, no cigarro de palha, queimado pela metade, que era novamente acendido depois da nossa partida, do cachorro com nome de gente que andava certo pela cozinha. Dava para ver o tempo passando para ele, na saúde cada vez mais frágil, no chapéu furado e nas botas muito gastas. E por que insistir com as flores se já tinha tanto trabalho? Por que deixá-las bonitas, quando tudo ao redor era só sobrevivência? Dava para esquecer da dureza do lugar se olhasse só as flores. Dava para gostar de lá, especialmente do que não parecia com todo o resto. Dava para achar ternura no que era árido.

   Dava para sentir o cheiro das hortênsias, mesmo do outro lado das cercas; tenho certeza.

  Então hoje, quando a música parou e a avenida estava ausente de carros, dava para escutar a respiração profunda, difícil, super exigida, o coração mais acelerado e o som dos próprios passos, na corrida. Nunca um caminho pareceu tão bonito, assim, com o que era dele: esforço, batidas e o oco do som dos pés no chão, sem letra ou melodia escolhidas. Viver a experiência do que não é mágico, mas esforço, empenho, luta e imperfeição é também uma poesia. Não se negar a ver o que é. Natural, fosco de poeira, seco, calos e dor. Na corrida, eu era uma casa de paredes quase abertas, de solo vermelho e abandono. Eu nunca precisei mesmo das flores, mas elas sempre estiveram lá.

  Não se negar às batidas do coração, o pulmão aspirando mais e mais ar, a subida no morro, a falta de uma música que embalasse a luta de um corpo. A casa de paredes amarelas, tudo seco ao redor, com as rosas e hortênsias que ele cuidava para  mim. Não eram só as flores que importavam. A casa e o velho de mãos grossas, também perpetuaram os seus cheiros em mim. Aprendi a gostar do árido, assim como do jardim. 




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