segunda-feira, 21 de março de 2016

Peixes com ascendente em miopia 2.0

  Nasceu e é lindo. Amo-o loucamente antes de qualquer sinalização de correspondência. Não me importa se sorrirá para mim, se quando eu passar estenderá os bracinhos ou me rejeitará. Amo-o com a facilidade que o amor deveria sempre andar: amo distraída, bem intencionada, não esperando nada além do meu amor em si. Amo-o como uma louca solitária destinada a um precipício, sem volta, sem medo, sem racionalização; ninguém para me salvar. Amo com o corpo abandonado ao vento, sem pensar em queda, num voo de um segundo, antes do chão, mas gozando da eternidade enquanto estou entregue ao ar.

  Nasceu míope, o médico contou, vai ser um bebê de óculos e eu o amarei ainda mais por essa extravagância.  Amo-o sem volta, sem direito a troco, amo-o desde o cheiro de desinfetante do hospital, da pomada para assadura, do leite que a sua expiração exala, até o cheiro fresco da sua cabeça molhada, depois do banho. Amo esses olhos ora preguiçosos, ora atentos a um mundo para sempre ininteligível. Amo seu elefante verde pendurado na porta, seu cachorro amarelo no chaveiro da bolsa, a sua camiseta, dizendo que me ama, mesmo que seja presente meu e que eu nunca me assegure desse amor. Nem quero. O amor é meu e já basta.

 Vem meu amor,  seja tudo aquilo que você quiser, fizer ou rejeitar ser e fazer, vem para o meu amor que nunca lhe pedirá nada, não lhe dará conselhos, nem apontará caminhos. Venha no colo da desajustada, da tia caçula da família, venha e deite no meu peito e deixe a sala toda em suspensão, pensando que eu não tenho jeito, não tenho talento e poderei deixá-lo cair ou apertar um braço, uma costela (- A cabeça, apoia a cabeça dele direito!). Porque amo não com um órgão do corpo, um lado do peito, mas amo-o inteira, da unha até a raiz do cabelo. Nunca um corpo esteve tão conectado em suas partes, só para este amor.

  E na sala de espera todos querendo saber o peso, os centímetros de altura, a cor dos olhos. - E se parece com quem? E eu contente do seu signo, você pisciano, meu pequeno sonhador, menino de sensibilidade. Eles querendo um rosto e eu feliz com a astrologia muito apropriada. E, então, seguirei agora pela vida assim: sabendo que existe, que minha alma gosta da sua e a gente vai ter um futuro bem largo. Um dia, vai me vestir com a sua calma infantil, seu desassossego adolescente, seu inconformismo jovem, sua maturidade calma, desassossegada e inconformada.

  Então, meu pequeno maior amor, não me ame, mas encontre um caminho de ser sempre e cada vez mais você: não carregue consigo nenhum cansaço do mundo, não deixe se abater pelo tédio, pela monotonia; seja companheiro incansável do absurdo, não tenha consideração com os que quiserem te afastar dele. Leia poesia, se embriague de vez em quando, não faça exercícios em frente a um espelho, por favor não vá a academias, ande de bicicleta, corra na rua, jogue bola no campo, mas não naqueles de grama sintética. Caia, se machuque, quebre um braço ou os dois, também pode ser o mesmo duas vezes, enlouqueça seus pais, suas professoras, seus avôs, as outras tias, que eu mesma ficarei bem quieta, bem tranquila, sabendo que o machucado vai cicatrizar e o gesso é um charme do qual a infância precisa.

  E  ao se curar dessa miopia, que outras não cheguem nunca a sua alma. Que você olhe para uma mulher e a veja como igual, nunca a julgue pelo que ela veste ou pelas escolhas que ela faz, não a limite em crenças sobre certo e errado, não alimente suas vaidades, disputas de poder; que você entenda também a beleza da vida de um cachorro, um gato, uma mariposa, um cipreste ou um bezerro. Que além dos olhos, você tenha ouvidos para as vozes diferentes das suas, que você acolha-as, mesmo que não fale como elas. Que você não queira invadir os pensamentos de quem amar, mas que aprenda a chegar até eles com calma, sabedoria e gentileza e que, somente a convite do seu par, você se abrigue neles e possa ver como cada um se constrói. Que você  ame, mas não seja um desesperado esperando amor; que você se entregue aos sentimentos, porque é bom, porque nos faz sentir mais vivos, porque nos humaniza sempre mais, mas que você também não se renda se tiver que fazer concessões que o escondam de você mesmo.

 Faço um barco de papel e você ainda não entende o sentido, mas o vê, eu sei bem que o vê; canto uma música bem baixinho e você se acalma, fecha os olhos e dorme quente nos meus braços. Eu arrumo a cama para você, fecho as cortinas e juro que esperei por você a vida toda. Fecho a porta e os meus olhos não precisam mais de lentes, porque você me libertou.

  Meu menino de óculos, sua miopia me ensinará a enxergar o mundo outra vez. Venha com sua tia louca, desabrigada de juízo desde o dia em que você chegou. Não se cure da sua loucura que eu também não me curarei nunca desta minha: de amor que nem sei bem como te dar.



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