terça-feira, 29 de março de 2016

Sua obediente anarquia

   Ela parada, de olhos para o vazio, mãos postas ao ar, abandonada de discursos, muda de cansaço, desesperançada por minutos. Podia ser minha mãe, avó, minha irmã, minha amiga, a prima, professora ou vizinha; podia ser eu. Era mais fácil quando podia  ser só  leve, flexível, poder se embrenhar nas matas sem fazer barulho, tomar banho de rio sem ser repreendida e ir sorrateira tomando os espaços, todos que quisesse. Podia se atrever a conquistar não o que achassem que podia, mas o que ela desejasse, desde que não despertasse muita atenção. Podia quebrar regras, começando pelas mais simples até alcançar aquelas demasiado limitadoras, era só ter calma, paciência e delicadeza. Podia ter fala suave, de um jeito que ninguém nunca desconfiaria das suas certezas; parecer insegura era o que pediam. Decerto que o mundo a quisesse assim, mas ela não obedeceu a esse mundo que dilacera almas, disfarçado de cordialidade.

  E inventou de crescer largamente para onde não a queriam, de ir além, de não se entregar só a mansidão. Nunca bastou calor, afeto ou justiça que só a acolhessem. Sempre pôs os olhos em gente e lugares que pareciam distantes, diferentes, independentes dela. E, ainda, ouvia as vozes: interiores, secretas, íntimas e as outras dissonantes, doentes e ignoradas. Atenta a todas elas, entre uma transgressão e outra conheceu a dor, o isolamento, assistiu ao justiçamento com aqueles, que como ela, não se conformaram. Escolheu o vermelho e não desistiu da paixão. Primeiro a liberdade, antes e depois de qualquer outra coisa.

  Não aceitou concessões, não desistiu das vozes, lutou por elas, não passou incólume, foi castigada pelos gritos, pelos barulhos, pela indiscrição de querer ser plena, ser liberta e libertar. Caiu várias vezes e conheceu a subida. Muito, muito alta. Lugar que ela nunca imaginou conhecer. Sentiu o peso do ressentimento, da intolerância, do mundo que, de novo, a queria pequena, silenciosa e delicada. Rejeitou os algozes, não recebeu passiva o golpe; nunca aceitou nenhum deles sem luta. Não apanhou para desistir, não desafiou para se calar ou ignorar as vozes com as quais se entrelaçou, não perdeu seus iguais para ser cativa. Silenciosa, de olhos perdidos no vazio, ela ainda é anarquia, mesmo quando parece ser obediente.

  Nesses minutos de contemplação, vejo-a se outonando, deixando folhas caídas por onde passa... Logo você mulher, você que é só primavera, embrutecida, dura pelas ondas levadas na cara, mas ainda tem flor aí, que eu sei. Na luta desacompanhada de guerreiros como ela - porque ninguém conhece o que se passa nesse combate ao qual ela há muito se prendeu -  mas tomada pela força das vozes desconhecidas, ela não está vazia de futuro, experiente, sabe que ainda há de levantar de novo. As quedas também terminam um dia.

  Desobediente, liberta por si mesma e certa. Nada pode arrancar dela o que é dela por força, obstinação e, principalmente, resistência. E vai florir, vai. Vermelha, desafiadora, barulhenta, cheia de certezas, vai mesmo florir de novo. Pela minha avó, mãe, irmã, prima, professora, vizinha, por mim, que também conheço o desfolhar e a pétala nova. Sua anarquia vai florir mais uma vez e vão ver que a primavera não é só delicadeza e suavidade, porque coragem e resistência também produzem flores.



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