quinta-feira, 31 de março de 2016

No mar de ontem

   Não era água corrente em curso, não era vento antes de chuva, não eram mãos, unhas ou músculos, mas me tirou com toda a força de um lugar de suspensão, dúvida e medo. Estar num lugar de passagem e não saber ir até a frente, estar certa de não querer voltar para trás, mas não saber como fazer os pés se mexerem. Nada avisa, nenhum alarme dispara, ninguém passa, nem os sinos soam. Lugar de silêncio aterrador.  Os visitantes já foram embora, o dono da casa nunca chega à porta, nem o homem do sonho aparece; medo de estar sozinha, medo de não estar só e ser observada de longe; estrangeira, invasora, forasteira, sem direito ao voto, à casa, ao registro, nem fotos, nem memória.Uma pessoa sem lembrança, sem expectativa, sem número de previdência. Uma pessoa que experimenta a impessoalidade, uma pessoa-robô, não humana, pessoa que passa, sem passado.

  Um muro baixo de placas,  um portão com a chave esquecida, que ainda balança na fechadura , uma janela entreaberta e a impossibilidade de atravessá-los por culpa dos pés paralisados, mortos e se eu estiver morta? Se estivesse não pensava, não pesava a dúvida. Morrer é estar para sempre certo. Pensar em um meio de não estar mais ali, mas sem sair, um jeito de atravessar a passagem, mesmo sem certeza. Seguir o desconhecido, que nem som ainda emite, nem cor se vê, nem sabe mesmo se existe.

  Eu ontem pensei que talvez fossem os pés que me prendiam, que o escuro é que me imobilizava que a insegurança de estar só ou não é que me deixava no banco frio do corredor, por onde ninguém mais passa. Tentei não pensar muito, porque precisei terminar o trabalho, compreender a desconhecida, organizar a mesa, refazer o calendário, colar mais listas e números de telefones, para  os quais eu nunca vou ligar, no quadro com ímãs de sol. Mas logo, pensei que vida mais ordinária é essa que quando um amigo chama, você diz que não tem tempo, adia, pergunta se pode ser depois de amanhã; que a roda gira e você só deita cansada, deixa que ela vá para onde o destino levar; como se destinos fossem pilotos automáticos e nos levassem a uma rota prevista. E que já acorda cansada, fala o telefone cansada, não atende ao telefone cansada. Pensei em que vida é essa que não sorri a quem o olha com curiosidade, que espanta as pombas das calçadas, que reclama do choro do cão, como se eles não pudessem ser tristes, que não abaixa para pegar o tomate que rolou da sacola da senhora à sua frente, que não faz mais amigos, que não canta mais no elevador e nem pergunta para a criança quantos anos ela tem - e elas gostam tanto de responder.

   Mas então, enquanto fechava a última gaveta da mesa, uma música veio, saída sabe-se lá de onde. Uma voz rouca, com guitarra, baixo e bateria de fundo me lembrou como os pés andavam, como ultrapassar os muros, os portões e escancarar janelas. Levantei do banco, segui pelo corredor livre de gente e suas censuras.  E me senti acompanhada, sem vigilância só acolhimento e um balanço que me pôs em frente a um mar de imensidão brilhante.

  Me deixou na sua margem, olhando para ele, poderoso, infinito e vasto de caminhos e me fez olhar sem medo, para as ondas que quebravam na arrebentação. Quem é você que não nunca entra? Quem é você  entre a calmaria e o desassossego das águas, recebendo os ventos, observando as irremediáveis rotas da brisa, tão impassível, insensível e imóvel, presa no banco, no corredor, atrás dos muros?
  E a força sem nome, sem corpo, sem ciência, só som arrebatador,  me arrastou até o meio do mar e me fez querer nadar, me ensinou que nas altas ondas ou aprende ou desiste. No mar de ontem ainda nado. E por muitos dias ainda continuarei, buscando outro lugar que não seja esse da impessoalidade; os braços, as pernas e o fôlego se reforçam, mesmo, no escuro e na turbulência.



2 comentários:

Ana disse...

Amanda acho que ja lhe disse que este e um blogue do coraçao, nao
que texto lindo identifiquei me muito.
e bom estar de volta
beijinho e desculpa a falta de pontuaçao e erros mas este teclado tem de ser mudado, esta me deixando louca.

Amanda Machado disse...

E fazes falta aqui e no Mortal e Rosa...
Fico feliz com o seu regresso!
Que bom que gostou do texto...obrigada! ;)