quarta-feira, 2 de março de 2016

No terceiro dia de março

   Das cortinas estampadas não sentiremos falta, nem do sofá cinza grafite, tampouco do carpete marrom, das paredes com flores douradas e do prédio verde desbotado também não. Mas do que se passava lá quase sempre é preciso lembrar; como se a memória nos mostrasse o caminho do afeto, do laço. Somos a partir de algo que fomos juntos. E, as colchas de retalho, as guerras de almofadas, a cidade que construíamos, no quintal, com brita e areia roubadas do vizinho, a garrafa de vinho quebrada e a culpa difícil de ser compartilhada.

   Subíamos os três juntos, quase sempre vindos de lugares diferentes, mas a volta tinha que ser em trio, era exigência da casa. Fomos quase sempre fraternos na saída e na volta, mas sempre vindos de outras direções, de  lugares em que cada um de nós se encontrava ou, ao menos, tentávamos. As saídas se tornaram mais e mais compridas e as  voltas cada vez mais espaçadas. Crescer é também ver muitas distâncias se alongarem.

    Tinha dia de não reconhecer neles nada de mim, olhava fundo, buscando alguma memória daquilo que nós três fomos e nada. Parecia uma chamada ao telefone que nunca se completava; discava várias vezes um número que parecia certo e nada. Ficava sem a comunicação, andava atrás de uma caneta e bloco de papel, talvez a escrita chegasse onde a voz não podia. Mas, então, eu caía, não de uma altura bem baixa, não como quem tropeça, mas caía de quase fim, de achar que nunca mais levantaria e era só erguer cabeça, que prontas, estavam as mesmas mãos brancas, cheias de pintas que eu tinha largado na saída. Irmão é uma extensão daquilo que você nem sabe ser, desaparecem no grito, mas sempre socorrem na queda.

  As cortinas desapareceram, o sofá mudou de cor algumas vezes, até ser trocado definitivamente, o carpete desgastou e o prédio verde nunca mais o vimos. Mas ele sempre volta, em cada chegada partilhada ele volta com um verde mais vivo, assim como as cortinas e o carpete cheirando ao vinho que nunca tomamos. O que nos faz gostar de um lugar quase sempre não é o que temos nele ou sabemos dele, o que nos prende a um lugar é pensar na ausência do que conhecemos, se estivermos fora. É o risco da perda, mesmo que o temos já não nos satisfaça, que nos aprisiona no conhecido. Por isso, permanecemos tanto mais no vivido do que no caminho para outros lugares. E, por isso também o adeus é simbólico, muito mais figurativo do que concreto, porque coexistimos numa dimensão passada que não abandonamos nunca. Vivemos sempre aqui e lá; divididos no tempo, habitantes fragmentados.

  A partida só se prolongou no tempo, haverá a volta sempre. Nós três subindo a rua. Ninguém diz de onde veio, o que fez, o que viu. Mas das experiências diversas nos desprendemos para sermos três; os mesmos da saída.  No terceiro dia de março, todo ano, eu sinto o cheiro do vinho derramado no carpete, o vento bate na cortina estampada, que roça a minha perna e eu, preguiçosa, me demoro no sofá grafite. As mãos que sempre vieram, mesmo quando eu não as reconheci, trocam o canal da TV e passam as folhas de um livro que eu ainda não li . No terceiro dia de março eu volto à casa que eu nunca deixei. Vivemos sempre nessa despedida que forçamos a não reconhecer. O lugar de onde se veio é demorado, por isso nunca chegamos a lugar algum, estamos sempre na partida.



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