sábado, 19 de março de 2016

Os pratos que eu lavo ele não vê

  Ele olha e é terno. É mesmo confortável ser olhada com gentileza e desejo. Mas então, a voz interna
interroga: - Até onde alcança esse olhar? Porque ela lava pratos e ele desconhece, nada com peixes e ele nunca viu, joga búzios e lê cartas, às vezes, mas ele ignora. Quantas partes desapercebidas dela terá escapado aos olhos desse homem? E quantas ela gostaria que ele enxergasse?


  Às vezes queria que ele não visse nada; não escolhesse este ou aquele ângulo; talvez se fosse guiado só pela voz dela, os instantes negados chegariam. Mas por mais que ela ofereça os pratos, os peixes, os búzios e as cartas ele não vê, não pode, não consegue, não quer. E ela se sente mais ou menos consolada pelos olhos gentis e cheios de desejo, espera um futuro em que ele veja as outras partes dela. Não virá, não terá. Não em tempo. Se vier, já será tarde e a encontrará em sono profundo.

  O que ele vê e gosta é também ela, falarão. E por isso, vale ter paciência, dizem que é assim, que ela tem sido  muito exigente com o olhar alheio, que não devia dar crédito as suas interrogações; mas como? Não ser vista pelo outro já é insuportável o bastante, agora querem que ela própria selecione o que nela deve ser evidenciado ou obscurecido; que voz ela ignora ou qual ela deve levar a cabo? Dirão que o tempo o fará melhor vidente, que ela não se angustie, que a intimidade será as mãos que abrirão a cortina.Falam sempre isto. Mas não há conselho que a deixe confortável com esses olhos tão rasos de entendimento.

  Nem sempre o que se quer é gentileza e desejo nos olhos, ambos são bons também, mas nunca são suficientes. Às vezes, o que se quer é alguém que se espante, que não compreenda, mas que procure muito entender; que não se limite ao que busca, mas que encontre outra coisa e acabe por achar muito melhor do que a sua procura. Olhos que não estacionem nas vagas fáceis, que busquem  no canto escuro, no trecho mal sinalizado, num apertado espaço entre a garagem e a placa do proibido estacionar,  as partes de alguém, onde ninguém chegou.  

  Ontem ele veio, jantou com ela e não perguntou pelos pratos, ela começou uma conversa sobre ir à praia no dia seguinte e nadar, mas antes que ela falasse dos peixes, ele começou outro assunto. Na gaveta do móvel da sala as cartas e os búzios continuam à espera, para alguma necessidade. O futuro parece longe.

  Amanhã vai ao mar nadar com peixes, voltará à casa e lavará os pratos do jantar de hoje, depois, vai até à varanda, jogará búzios e tirará quantas cartas quiser, para ler qualquer futuro que não esteja ele. Nas partes dela que ele ignora estão aquelas que mais parecem guiá-la para uma rua onde ele nunca chegará. E por isso, o tempo não aproxima da descoberta, ele estaciona na vaga mais óbvia e guarda no porta-malas o que deveria vir no banco da frente.




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