domingo, 6 de março de 2016

Sobre cercas vivas

  Uma parede verde delimita o prédio central, isola-o sem arames, nem tijolos ou concreto, também não há
nenhuma placa ou aviso, mas ninguém ultrapassa. Mesmo que abrir uma fresta não fosse difícil, mesmo que os arbustos nem estejam tão colados, ninguém testa. São centenas de pessoas que todos os dias contornam o prédio, sem nem tentar um caminho de desobediência, um atalho contestador que as façam chegar do outro lado, atravessando o limite vulnerável do verde. A presença da cerca viva é o bastante, ninguém se posta ao lado dela, ensinando que não pode, não deve, que ela é o limite; os corpos até se aproximam, passam bem rente aos arbustos, às vezes tocam as folhas, carregam um pedaço de natureza entre os dedos, mas  é tudo, não há um pé que cruze a linha definida pela vegetação.

  Da minha mesa vejo o muro verde e ele é mais poderoso que todos os outros de concreto espalhados ao redor. Não há restos de spray, nem tinta, nem nomes gravados, marcas de pés fugitivos, não há meninos escondendo o rosto e contando até cem para, depois, descobrir esconderijos; a cerca viva mais intransponível que as vigas de concreto. Mas há um homem.

  Há só um homem que vem ao final da tarde, estende a mangueira de borracha azul, saí atrás de dobras que ele pacientemente desfaz,  antes de  ligar a torneira e jogar a água na fronteira de folhas. A água é a única a irromper com a massa verde inatingível e tomá-la, escorrer por cada folha, até molhar, do outro lado, as paredes do prédio que ela protege. A cerca viva no meio da praça central, divide, mas não separa efetivamente. Cerca olhares, mas não é capaz de evitar uma invasão. É e não é. Não a cruzam, porque não querem, porque entendem e respeitam mais o limite simbólico que o concreto. Num jogo sutil de esconder e exibir o que tem depois dela, a cerca viva é soberana. Nada é mais eficiente que os arbustos frágeis de um limite imposto noutra esfera, que não o da impossibilidade. Atravessá-la é sempre possível, mas não o farão; só a água.

  O homem termina seu trabalho, desliga a torneira e recolhe a mangueira de borracha muito azul. Depois que ele vai embora, a cerca viva fica completamente desamparada de alguma intimidade. Mas, afinal, ela é a proteção; não há vulnerabilidade para quem abriga. Ela brilha verde de novo, um cachorro vem lamber as folhas baixas que ainda estão molhadas, mas nem ele ultrapassa, não é ele é o insurgente. Ainda vejo o cachorro, a cerca viva e alguns corpos que se aproximam dela, mas abandono-os e volto para o trabalho, aos poucos. Um relatório que não passa da terceira linha, um telefone que toca e ninguém atende e a água mineral que acaba de chegar.
- Alguém por favor assina aqui! O entregador impaciente chama.
- Deixa aqui, eu assino.

   Enquanto a assinatura vai aparecendo no papel, penso na parede verde do lado de fora, escrever também é sobre isso: a dúvida constante de saberem mais sobre você do que gostaria ou nunca saberem, de verdade.  A escrita é uma cerca viva, coloca-nos no mundo, sem saberem que fazemos parte do que há fora e dentro. É um eterno jogo de ocultar e exibir. Afastar invasores, sem força, nem matéria ou avisos. Seduzir olhos que não ultrapassam o limite, mesmo que ele seja bastante estreito. Fronteira repleta de vulnerabilidades, mas, ainda assim, intransponível.



3 comentários:

Paulo Abreu disse...

"a dúvida constante de saberem mais sobre você do que gostaria ou nunca saberem, de verdade."
Claro que escutando Mumford dá uma certa responsabilidade, meio que tensa em escrever algo sobre o que li acima.
As paredes que erguemos, os muros, os obstáculos, e mesmo assim alguém percebe - e é algo interessante, encontrar o objeto oculto. Traduzir-se, como poetou o Ferreira Gullar (Uma parte de mim
é todo mundo:outra parte é ninguém:fundo sem fundo. ...")doi muito, por que ninguém quer ser traduzido assim. Expõe o lado secreto para a massa crítica e daí lá se vão os mistérios.
Também, e aí eu acho (acho, pois não há a certeza) de que exclui a mestre da midiática filosofia de amor - Lise Bourbeau.
Bem, mas o Freud .. vixe, demorou!!! Rs! O Freud, tudo bem sabia que eu acabaria chegando nele -
"Quem tiver olhos para ver e ouvidos atentos pode convencer-se de que nenhum mortal é capaz de manter segredo. Se os lábios estiverem silenciosos, a pessoa ficará batendo os dedos na mesa e trairá a si mesma, suando por cada um dos seus poros."
Bem, isto também se aplica ao que escrevemos - ali ficam sempre um pouco do perfume da nossa existência.

Amanda Machado disse...

Mesmo, Paulo? Ouvindo Mumford? Que boa cia eu tive então! Freud...sempre ele nos desabrigando, revelando o que achávamos secreto e você sempre o saca em hora certeira.

Boa semana!

Paulo Abreu disse...

É mesmo, estava ouvindo Mumford em sua nova fase. E,claro, lendo você, digo, seus contos. Boa semana.