sábado, 2 de abril de 2016

Eu te deixei esperando

   Não avisei antes, mas não chego a tempo, aviso agora com atraso.  Ainda serve? Não deve. Trinta, quarenta minutos de atraso, quando corro muito, senão demoro dias, outras vezes, nem chego. Não que eu more muito longe, ande devagar ou que não tenha respeito por você, pelo contrário, é que meu afeto é carregado de demoras. É dele, é meu este tempo.
 
  Te deixei esperando para você não se dizer enganado mais a frente, deixei esperando como um cartão de visitas: eis o meu serviço, o atraso, o melhor deles. Eu o deixei esperando, mas antes aconselhei escolher a janela, você veria as pessoas caminhando na rua e nenhuma delas seria eu, você olharia elas passando pelo seu vidro, algumas tristes, outras sorrindo, muitas apressadas, os cachorros da rua, os marginalizados, as mulheres de óculos escuros e homens desfilando, gente de todo o tipo, algumas tirariam o casaco bem em frente a sua mesa e você compartilharia um pouco da intimidade de um desconhecido. E veria como é bom e bonito. Você se distrairia com a vista e ficaria mais calmo, depois se lembraria que eu nunca chegava e se perguntaria se valeria a pena esperar. É bom ter perguntas. O melhor jeito de começar é com dúvida.

  Deixei-o esperando, porque não tinha certeza se chegasse a tempo, seria eu mesma ou a outra, aquela que tenta agradar; tão falsa ela. Deixei você esperando para o café esfriar e não queimar sua boca, para você ficar mais tempo sem o cigarro, longe da violência e poluição da rua, dos assassinatos, dos corruptos, das bicicletas perigosas nas calçadas, do seu trabalho chato. Deixei você esperando para salvar-lhe a vida ou, ao menos, a tarde.

  Te deixei esperando no segundo andar, eu estava no primeiro fazendo hora, deixando os minutos escorregarem pelas escadas, deixei-o na portaria do prédio, no café, no terraço daquele restaurante caro, olhando a carta de vinhos incontáveis vezes, te deixei esperando para você desistir, saber que talvez eu demore bastante, que eu erre todas as ruas antes de chegar a sua e quando eu chegar, talvez você esteja dormindo. Deixei-o esperando para esfriar o jantar e você pensar se vale mesmo a pena a comida fria, o estômago roncando e eu demorando, demorando, demorando.

  Te deixei esperando porque eu tenho medo que você não tenha medo. Deixei esperando para que você voltasse com um pé para trás, que desconfiasse de mim, das minhas intenções, que são sempre as piores possíveis, para mim, ao menos. Deixei esperando para que você desenhasse no guardanapo, escrevesse o trecho de um Romance, lembrasse um música antiga, um cheiro da sua infância no interior, fizesse planos de um investimento, para que você vivesse outros tempos e que gostasse também deles e se perguntasse se eu caberia um dia neles.

  Deixei-o esperando porque eu é quem não podia esperar, não mais, não de novo. Deixei você esperando para testar quanto tempo seus suspiros durariam, sua paciência com o garçom resistiria, seu copo de água ao meio acabaria. Deixei você esperando para que quisesse o mar, a serra, até outra mulher, mas que desejasse outra coisa no mundo, além do que já tinha preparado para mim. Deixei você esperando para você esquecer tudo o que queria me dizer, tudo que estava ensaiado e que você, sem pensar, dissesse outras coisas e por isso fosse mais natural. Eu te deixei esperando para protegê-lo da sua certeza e dos meus atrasos.

  Te deixei esperando para você viver um pouco da agonia, do desassossego, da suspeita da minha chegada e experimentasse um pouco do que eu sinto todos os dias, desde que você me convidou para entrar na sua vida. Só te deixei esperando para prepará-lo e dizer que talvez não seja fácil. Te deixei esperando para eu chegar depois, sorrindo e se você ainda me esperasse, eu daria o amor que, pela espera e coragem, você mereceu e tornou-o seu. Deixei-o esperando para chegar apressada, pedir desculpas e dizer que eu sempre chegaria.


4 comentários:

Paulo Abreu disse...

Querida Amanda,
Espero que esta carta chegue a tempo, apesar de não ter ainda uma definição de tempo que me conforte. Altura, Largura, Profundidade e Tempo são as dimensões da vida. Três espaciais e uma temporal. Isto me assusta.
Anos atrás, quando ainda vagava nestas elucubrações que acometem quando o serviço está pouco e o tempo está muito, criei a tese do Hiato Passional. Acho que já lhe escrevi sobre isto.
Este tempo de espera entre a partida e a chegada não é apenas um tempo, acontece uma vida ali. Contamos a nossa vida por etapas. Nasci em tal lugar, onde morei até tal idade, fui morar noutro e dali parti para fazer coisas e estudos ou trabalho lá longe, até que cheguei aqui e ainda busco Shangri-la onde não existe o tempo.
Mas lá deve ser muito chato, pois aí não haveria este Hiato Passional, esta existência entre o partir e chegar a algum porto seguro ou desejado, não necessariamente os dois em concomitância.
Dito assim, a frase condenatória - TE DEIXEI ESPERANDO é de uma candura quase infinda - permitir ao outro viver seu hiato passional.
Boa semana!

Amanda Machado disse...

Suas cartas sempre chegam a tempo, Paulo.

Sim, você já me explicou sobre sua encantadora tese do Hiato Passional...não esqueci. E, de fato, ela é muito apropriada a situação. Também, penso que em Shangri-la todo o sossego, a calmaria, a falta de confusão deve deixá-la chatíssima.
Obrigada pela leitura e pela lembrança do Hiato Passional...
Uma ótima semana para você também!

Paulo Abreu disse...

santo deus ... estou ficando velho e repetitivo ...

Amanda Machado disse...

Hahaha não está não, Paulo!
Você mesmo já suspeitava ter me falado sobre ela...e é boa mesmo, muito. Vale sempre voltarmos a ela. ;)