terça-feira, 17 de maio de 2016

A camisa branca de colarinho

   Só quem teve a alegria de um cão a sua espera na chegada em casa sabe o quanto os olhos de afeto de um bicho acostumam a gente. Eles sentem o cheiro da aproximação do seu dono. A gente pode estar ainda na portaria e o apartamento ficar no décimo terceiro andar, que eles começam com uma inquietação primitiva: primeiro levantam as orelhas, depois abaixam a cabeça, como numa reverência e lambem suas patas, se levantam sem mistério, fazem sua cauda dançar e vão até o corredor calmamente, como se estivessem a espreita de uma presa. Mas basta a gente sair do elevador e eles têm a certeza da presença, daí num quase galope desenfreado correm como se disto dependesse sua sobrevivência, restos de sua ancestralidade, se os espaços forem muito limitados, correm em círculos, até pararem, olharem para a porta ainda fechada e latirem como se esperassem o retorno de um redentor e quando, finalmente, a maçaneta gira, eles vão em golpe ao encontro do seu dono.

  A gente pode estar bem cansado, pode não ter motivos para festa, pode até tentar afastá-los com uma das pernas, mas eles não se entregam, não entendem uma rejeição. O cão é ser mais abnegado do universo na chegada do seu dono. Quem tem um cão sabe o que esperar deles ao abrir a porta. Quem tem um cão tem total segurança no amor devotado dele. Nossas expectativas nascem da repetição, do amor que se confirma a cada dia. Mas o cão com a gente é outra espera, tudo o que eles mais querem é um afago na cabeça nesta chegada. Às vezes ganham, às vezes não, mas todos os dias se lançam à porta de entrada, na expectativa das mãos do seu dono.

  Um amor que sabe, porque sempre recebeu e outro amor que espera, porque pode receber. Entre os homens também há olhos de espera com os seus afetos ou porque confiam no que já tiveram ou porque se prendem ao que poderá ser.

  Na lateral de uma agência bancária do bairro, um grupo passou a morar. Não sei há quanto tempo estão por ali, mas tempo o suficiente para não me lembrar da última vez que atravessei o caminho entre o canteiro da avenida e a lateral da agência. Não há mais passagem, só roupas dependuradas, colchões enrolados, cobertores estendidos e as coleções particulares de cada habitante da lateral do banco. Uma mulher coleciona restos de maquiagem e flores de plástico em vasos coloridos, de tamanhos diversos - decoração descartada dos apartamentos elegantes que circundam a agência;  um homem enfileira rolhas de vinho na mureta do canteiro, outro empilha livros amarelados, sem capa, organizados por tamanho, no chão, embaixo dos vasos com flores da sua vizinha. São seis ou sete moradores, que infelizmente tenho dificuldade em reconhecer, porque depois de algum tempo na rua se tornam impessoais demais para gente que não atravessa mais a lateral do banco, não só pelo pudor de invadir um espaço público que tornou-se privado, mas principalmente pelo medo de confrontar-se com a precariedade da vida.

  Mas se o trânsito lento nos faz parar e olhá-los por mais tempo, logo a gente vê as coleções, as risadas, o jogo de damas, um homem lendo Charles Dickens, outro alimentando o cão e começamos a reconhecê-los, a nos identificarmos com aspectos deles que também são nossos, diferenciá-los pelos gostos e ainda que a rua os invisibilize com frequência, basta dois segundos mais de olhos sobre eles e a gente tem a certeza de cada preciosa existência. Hoje o ônibus parou bem em frente ao grupo, vi que o movimento ao lado do canteiro, era diferente, mais coletivo. Estavam quase todos em círculo, só um homem se mantinha mais afastado, acho que o dono dos livros. No meio do círculo, outro homem sendo penteado, perfumado, passivo como um manequim de loja, com as barras das calças sendo dobradas pelo colega e a camisa de colarinho branca, sendo esticada, abotoada pelas mãos que quase nunca tocam botões tão pequenos e em tão grande quantidade.

  Preparavam o homem para alguma solenidade, vestiam-no e embelezavam-no como se o fizessem com eles próprios em frente a um espelho. Cada fio de cabelo assentado com um pente vermelho de cabo quebrado, as calças esticadas da cintura folgada até o par de tênis surrado e a camisa mais bonita do quarteirão: branca, nova e no número dele.  No manequim em meio a roda eu via olhos de gratidão pelo afeto recebido e nos dos outros, a emoção por um grande acontecimento que se aproximava. A possibilidade de felicidade para um deles, socializava o sonho. Eram felizes porque a felicidade de um companheiro era próxima das mãos. Só o homem do livro é quem se mantinha afastado, sentado do outro lado da rua, se recusando a participar do ritual, fumando um cigarro e olhando para lado contrário ao que o grupo estava. Mas os olhos do homem de camisa branca não desistiam dele, o procuravam, enquanto o resto do grupo parecia fingir ignorar a sua existência; punição pela falta de empenho.

  Do ônibus eu não podia ouvir, não tinha acompanhado o começo de tudo, nem sabia se teria um desfecho, as cenas recortadas da cidade, às vezes dão essa angústia da falta de fim. Numa TV eu assistiria tudo sem pausas, mas sem a beleza do imprevisível, do incompleto. O homem de camisa branca, afasta-se um pouco do grupo , atravessa o corredor entre a agência e o canteiro da avenida e segue em direção ao dono de Dickens. Ele observa impassível a aproximação da camisa de colarinho, mas, de repente, antes que ele dissesse qualquer coisa ele se levanta, aproxima-se do novo homem a sua frente e ajeita seu colarinho alvo. No rosto de barba recém feita acho que escorre uma lágrima, que ele enxuga no punho da camisa nova. Não se abraçam, não trocam palavras.Os homens se afastam e meu ônibus segue o itinerário planejado.

  Bastava um toque no colarinho, uma suspeita  de incentivo e o homem de camisa branca sentia-se encorajado pelo afeto que podia ou não emergir.

  O que, às vezes, o amor quer da gente é um toque no ombro, um olhar de confiança, um colarinho desamassado, um gesto pequeno de estímulo e nada mais. E a gente evitando esse mínimo, porque acha que o outro merece o que a gente não pode dar. Mas na recusa raramente entendemos o amor. A gente se omitindo no exato mínimo necessário. Quem já teve um cão sabe que o amor precisa de muito pouco e que as expectativas seguem fortes, mesmo depois de um dia de recusa.




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