sexta-feira, 13 de maio de 2016

Os canivetes podem continuar caindo

  Sob o céu de um cinza assustador, depois de uma noite afogada no travesseiro, desolada, numa desesperança de doer na alma;  tem-se que levantar e ir para vida, não importando se parece boa ou má. Muito triste perdermos quem amamos, seja de morte ou partida com adeus; doloroso também é o abandono de um sonho, ou pelo despertador urgente ou por mudança de enredo mesmo, mas ver ruir um caminho coletivo no qual tanto acreditamos, é ver-se afogar e não ter braços nem para pedir socorro; o grito entope a garganta. No individual, eu sempre acho que me ajeito, bem ou mal vou rolando as dores até elas se perderem em uma ladeira qualquer, mas se a angústia aproximada interfere numa história grandiosa, não sei bem o que fazer. Fico triste e só.

  Os canivetes ameaçam cair, os três passos à frente, demasiados lentos, conquistados às custas de um esforço imenso, parecem agora perdidos, voltamos aos seis passados. Fui à rua, fui tentar ser o que era no dia anterior e no outro e outro. Eu menti que poderia ser a mesma. Vi a vida lá fora e embora tudo parecesse o mesmo não era; não será mais. Andei como o cão de rua: segui desconhecidos, fui atraída por cheiros, assustou-me as buzinas, estas que comemoram a própria derrocada e nem sabem. Quis voltar ao lar, de medo, de vergonha, de um luto imenso.

  Abro a porta do apartamento, tento esquecer, mas a mulher na televisão não me deixa; toda a dignidade numa retirada. Choro de alívio, eu não posso estar errada. Na roupa branca dela eu me inspiro, na firmeza dela eu me seguro. Hoje perdemos, amanhã tem luta. Hoje é desesperança, mas amanhã pode ter sonho.

  Menos de uma hora depois e a minha alegria de uma pessoa só bate à porta. Eu sei que ainda ameaça os canivetes, mas eu não posso não ser feliz agora. Seria injustiça com a minha alegria. Entende? É como quando nasce alguém muito amado, num mesmo tempo que nos despedimos de um amor; o lamento por um não esfria a paixão pelo novo; ambos convivem. Eu sei ser feliz quando chove lá fora, também tenho medo, mas, de repente, uma coragem toma conta do meu peito eu fico forte, firme, tomo um impulso e me coloco sob a ameaça dos canivetes.

  Chegou-me a caixa, abri e senti o cheiro dos livros novos, como todo início do ano na escola. Mas não sou a criança e os livros não são para aprender uma lição. Tem uma lombada de livro com o meu nome agora, não quero bibliotecas, queria estar nas mãos de quem trabalhou o dia todo e volta no coletivo lotado durante à noite. É meu sonho possível agora

  Alegria e tristeza coabitam um mesmo coração, sem conflitos. Ambas não pedem posse definitiva, mas moram juntas, sem agressões, sem pedirem mais espaços, porque sabem que aqui dentro mora tanta coisa. - Entende, agora, a explicação deste universo para a sua vida de grão?
  Os canivetes podem continuar caindo, mas meu nome na lombada de um livro, este ficará, para sempre. Os dias de luta, são todos os passados e futuros, com meu nome na lombada de um livro eu sei que a felicidade também me alcança nos dias muito cinzas.




2 comentários:

Paulo Abreu disse...

ah, Amanda!

A inconsolável angústia. É interessante colocarmos pontos nas frases, dão a ênfase necessária. Dissesse "a inconsolável angústia com “!”; “?” ou “...”, o sentido ficaria atenuado ou sofreria desvios de condução. Mas o que li aqui mereceu a força do Ponto Final, simbolizando o processo em si.
E retornando ao encanto da sua crônica, há nela uma angústia anunciada como um sinal de alarme, apontando para uma dor que precisa ser contida ou não, na alma. Daí, desta dicotomia, é possível se permitir e/ou coexistir alegria e tristeza, como encerra - “eu sei que a felicidade também me alcança nos dias muito cinzas”.
Por formação acadêmica, a Física me ensinou que cargas iguais se repelem e cargas opostas se atraem. Mas foi a Física que me ensinou isto ou foi alguém que não quer que saibamos da coexistência das coisas cousadas? Por que alegria e tristeza são cargas opostas, então, logo se atraem. É isto mesmo?
Pensemos num elétron, vadio, singular, eternamente condenado a um transtorno bipolar – hora onda, hora partícula, intangível, e apenas imaginado, nunca visto. Não tem massa, não tem densidade, mas tem energia, à qual denominamos por convenção, de Carga Negativa. Ele orbita o Núcleo.
O Núcleo tem Prótons, de carga positiva, com massa e densidade. Estes prótons atraem os elétrons que mantêm a natureza funcionando. E tem os Nêutrons. Meu Deus do céu, os Nêutrons devem ser um bando de inúteis, sem carga e sem nada a fazer a não ser ocupar o espaço vital das Cargas Positivas.
Aprendemos que coisas negativas são ruins e coisas positivas são boas, logo a analogia permite a suposição de que elétron é do mal e próton é do bem, e os nêutrons são como o povo, fazendo número sem poder de decisão.
Mas onde entra a Angústia neste conceito rudimentar de energia? Não entra, por que nada é do jeito que vemos. Prótons ficam unidos num apertado espaço nuclear e são obrigados a se manterem assim, enquanto os elétrons passeiam por órbitas coexistindo uns aos outros. Como isto pode acontecer? Não é um mistério, é uma realidade.
Então as coisas negativas não necessariamente nos prendem e as coisas positivas são obrigadas a se aturarem? Mas e a gravidade?
Não existe gravidade no mundo atômico, ou no princípio das coisas. A gravidade é consequência dos nossos atos. Gravitará em nossas vidas, em orbitais próximos ou longínquos, tudo aquilo que nosso micromundo criou, e nada mais.
Podemos ser felizes, integralmente felizes ou podemos ser tristes, eternamente tristes, e estas coisas estão muito além da nossa compreensão por que alguém num determinado lugar determinou que acreditássemos nisto, como já acreditamos que a Terra era plana e o centro do universo, que números imperfeitos não existiam, que números negativos não existiam ... alguém ... sempre há um alguém.
Não concluirei isto hoje, mas fique à vontade para suas conclusões, críticas, anulações, risos, gargalhadas, etc e tal. Por hora, deleite em Olavo Bilac, muito além do seu tempo, e bem à frente destes conceitos mórbidos de coexistência pacífica por gravidade entre Tristeza e Alegria:
Ouvir Estrelas
"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo,
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muitas vezes desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...
E conversamos toda a noite,
enquanto a Via-Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo? "
E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".

Amanda Machado disse...

Ah Paulo...só me fez pensar mesmo. Sem gargalhadas, sem anulações ou críticas, só reflexões. Várias. Inclusive sobre a minha ignorância em física...como lamento! E também sobre a dureza de ser nêutron, sobre a gravidade de cada ato nosso e o que atraímos ou repelimos. Enfim...não concluiu e eu também não. Mas então vem as estrelas de Bilac e a gente se consola em só amá-las.

Como esse poema é bonito! E eu já tinha me esquecido dele. Abraços!