terça-feira, 10 de maio de 2016

A República do Meio

   Num espaço desses brancos, minimalista - uma mesa de centro, com dois livros de arte e uma almofada lisa no outro canto -  asséptico, de uma neutralidade angustiante. Somente o morno, a estabilidade sem frentes frias, sem sinais de aquecimento global. Nem vontade de tirar a blusa, nem necessidade de meias de lã. O banho entre as refeições, escovar os dentes antes de dormir, sem nem se lembrar mais do gosto daquilo que comeu; escovar os cabelos trinta e três vezes para cada lado, para estimular o crescimento, dizem; tirar a roupa do varal, mesmo sem chuva, nem cinzas de queimada, só mesmo por estarem secas. Na República do Meio,  o estanque é quem escolhe os atores, distribui as falas e ajeita a luz; nada de improvisos, tudo deve seguir rigidamente as burocráticas marcações.

  Na República do meio não decide-se entre agosto ou fevereiro, inverno ou verão, lábios ou nuca, diz que talvez sim, também pode ser que não. "Apareça quando der" é a frase preferida nas rodas da republiqueta. Na República do Meio passa um gato, mia o gato, a rede balança, sopra o vento, o caminhão lá longe faz uma curva, que só imaginamos pelo som dos pneus raspando o asfalto, um cão late, um assobio chama alguém e outro alguém grita em resposta. Na República do Meio tudo são os outros, nada é você, nem seu. Só eles acontecem, passam, choram, passeiam, se amam, têm ódio. Você não existe, não pode. Porque lá é lugar de não sei o quê. Não dói, mas também não traz alegria, nem tristeza; é um estado de não-ser só, solitário e invisível .

  A República do Meio é a obra esquecida, parada há vinte anos nas colunas que alguém projetou e até chegou a erguer, mas depois ninguém mais voltou.  É a mala de viagem esquecida na esteira do aeroporto, passa repetidas vezes sem ninguém se importar, se oferece exaustivamente aos olhos viajantes, até desligarem o equipamento e o funcionário mais bruto recolhê-la da sua solitude. É a intenção, aquela ideia que tivemos com um grupo de amigos, num dia, no verão, naquela conversa e nunca mais voltamos ao assunto.

  Um lugar de descanso forçado, onde quase nada que é profundo alcança, um lugar de superficialidades desnecessárias, ao um mesmo tempo tão úteis para repensarmos os outros lugares. Nem democracia, nem ditadura, mas uma anarquia meio burguesa, sem lutas, sem revoluções, neoliberalismo de sentimentos, cada um que se veja com o seu, capitalize as suas projeções e se responsabilize por cada uma delas; pelas desilusões na bolsa, pela queda vertiginosa da fé. Na República do Meio o governo é escolhido por ser menos pior, nem precisamos acreditar em ideologias, partidos, nem revisar programas, ganha quem parecer ser o que nem nos preocupamos saber se é.

  A República do Meio é aquela que o avaro ama, porque não gasta nada, não perde nada, ninguém consome ou deseja. Nela os dinheiros duram por não ter com o que gastar. Há total ausência de consumo ou de negociatas, o que já se tinha antes de chegar lá é o que continuará seu até o tempo de ir embora; nem menos rico, nem mais pobre. Imobilidade social completa e definitiva.

  República do Meio: nem medo, nem ousadia. Nenhuma surpresa ou decepção. É sono sem sonho; acordar depois de 10 horas de cama, seguidas, e ainda estar letárgico. Corrida sem largada ou pódio na chegada; perder a hora sem nem ter compromisso. É não se emocionar, não se afetar, não ser atravessado por nada, nem ninguém. Onde as músicas são só notas, os livros são um amontoado de palavras e os quadros são só cores pinceladas.

 A República do Meio é o lugar que quase nunca se quer estar, mas acabamos passando as mais largas temporadas no seu território; sem saber nem ter lugar melhor para ir. A única república em que os passaportes estão prontos bem antes do viajante nascer.




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