Coube a mim pés grandes para sapatos sempre muito pequenos e sapatos demasiado grandes para os pés inesperadamente pequenos dele.
Coube a mim um apetite de envergonhar leões, persistente e estrondoso e a ele, a satisfação invejável do estômago calado por um antepasto qualquer.
Coube a mim cabelos curtos e alma lavada, coube a ele secador e escova de cabelo e choro represado.
Coube a mim ombros de um nadador olímpico e a ele mãos delicadas de uma brancura translúcida que deixava a vista cada veia delicada e azul, dos seus dedos.
Coube a ele uma alegria gigante e a mim, uma melancolia fina tão persistente quanto a neblina baixa na manhã de inverno nessa cidade de morros.
Coube a ele uma velhice precoce que reclamava das dores, do frio, do tempo, da mocidade muito moderna e a mim, uma juventude tardia de curiosidades, amores platônicos e rebeldia às ordens.
Coube a ele, que sonhava tanto com um herói, não ter um pai no registro e a mim, ter um que me levava aos jogos de futebol.
Coube a ele ser o goleiro nas partidas da rua e a mim, centroavante e goleadora nas traves dele.
Coube a mim uma centena de sonhos, levados a cabo ou perdidos no caminho entre a cama e a mesa de cabeceira e a ele, uma dezena de planos traçados no papel e destruídos ainda na escrivaninha.
Coube a mim recolher suas decepções, chamá-lo para um café, uma dança sem passos contados ou filme no cinema do centro e a ele, coube os empréstimos para o meu aluguel, o telefonema para o táxi que me levava em casa na madrugada e a anotação do meu tipo sanguíneo e do telefone dele em cada primeira página de algum bloco que ele encontrava na minha bolsa.
Coube a mim e a ele sermos, desde cedo, os inesperados, os incompreendidos, inversos que se encontram e se reconhecem. Coube-nos rasgar as caixas, não sucumbir aos modelos, não corresponder aos critérios e sermos dispensados em sucessivas seleções.
Coube a nós não caber nas expectativas, trocarmos os sapatos e jogarmos miolo de pão no caminho para quem quisesse nos encontrar. Coube a mim ser o João e ele a Maria, da estória que a gente cresceu inventando, sem nunca escrever um final.
Porque o que nos cabe não tem que ser destino imposto, mas possibilidade de aceitação. Nos desvios, nas errâncias, nas vias tortas e inacabadas, na impossibilidade de sapatos certos para os nossos pés, a gente reconhece os passos incertos também de um outro e se comove, solidariza, até descobrir um tipo de amor que compreende e é compreendido. Nos coube não caber nas regras dos outros, mas fazer caber dentro de nós o raio que somos e a força que descobrimos ter.
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