sábado, 4 de junho de 2016

A música da rua é a rua

   No início era o violino, foram cinco ou seis anos, acordando sob o som de um aprendiz; todos os sábados. O menino eu mal conhecia, o vi bem poucas vezes na rua, mas acompanhava sua música, que ficava mais bonita a cada semana. Era cedo ainda e o som entrava antes do sol no meu quarto, eu sabia de sábado, porque a música me lembrava. Meu vizinho nunca soube, mas o violino dele era o som favorito da minha semana. Nunca me importei com as notas exaustivamente repetidas, nem com o repertório limitado dos primeiros anos, nas suas pausas eu aprendi a ter paciência e esperar pela beleza mais certa na próxima nota. Meu vizinho aprendia a tocar violino, enquanto eu aprendia a ouvir violino; nas manhãs de sábado eu tinha minha aula favorita e nem precisava me levantar da cama.

  Só soube que ele foi embora, quando no primeiro sábado eu esperei, acordei bem no horário e não ouvi música nenhuma, foi o primeiro, de muitos finais de semana, que eu ouviria o jato de água no piso do prédio. O violino me deixou e no seu lugar me deu o som ordinário da faxina, essa que eu reconheci desde sempre, que para mim nunca tinha sido novidade. Quis muito que ele estivesse viajando ou quem sabe, até doente, pensei que talvez tivesse quebrado um dos braços, porque além do violino, ele tocava as rodas de um skate. Todas as vezes em que eu o vi na rua, ele fazia manobras sobre as rodinhas. Mas depois de um mês eu não me enganava mais. O menino levou, definitivamente,  o violino dos meu sábados. Ele me deu, ele levou é, ao menos, um tipo de justiça.

  Algum tempo depois, o sábado ganhou outro som, não era tão cedo ou suave, mas a experiência era também prazerosa. O vizinho da frente começava a ter aulas de bateria. O instrumento, a metodologia, o repertório e, também, o menino eram outros, mas as manhãs quietas ou de barulhos ordinários ganhava, de novo, uma trilha musical. Com o menino da bateria ganhei vontade nova, assim que ele começava suas lições, eu me levantava cheia de energia, ele aprendia a tocar bateria e eu a ouvir bateria. Eu trocava os lençóis, fazia o café, lavava a louça e dançava o quanto podia. As manhãs de sábado eram menos suaves, mas igualmente alegres com música.

  Acostumei-me. Os sábados que, por algum motivo, a bateria faltava eu logo pensava no risco do fim. E se o baterista mudou? E se não quiser tocar mais? E se vendeu nossa bateria? Mas na semana seguinte o som me tirava da cama e eu sabia que continuávamos. Por três ou quatro anos eu ouvi os clássicos do jazz, rock nacional, blues, rock folk, funk e todo o tipo de som que o menino pudesse tirar do instrumento. Reconheci algumas das minhas músicas favoritas em pedaços de lição, lembrei das letras e cantei e, principalmente, voltei a reconhecer o sábado pelo som que ele fazia.

  Mas a bateria também me deixou. Dessa vez foi gradativamente, a música encolheu no tempo, começava mais tarde e acabava mais cedo. O repertório passou a se repetir ou voltar em músicas que o menino já dominava. Suspeitei que acabaria, quando ele não se arriscava em novidades. Deixou a frequência semanal por uma quinzenal, depois mensal e, há algum tempo, já não ouço um toque de baquetas. Alguém comentou que ele vai ser engenheiro e não músico. Que o sonho, desde o início era a universidade e a música era só um meio de relaxar. Não faço outra coisa a não ser aceitar os destinos que os outros escolhem para si, mas eu preferia a música. Desde o início eu levei muito a sério as nossas aulas.

  Mas a vida é essa coisa mais ou menos estranha, parece que os nossos dias são definidos mais pelas misérias com as quais aprendemos a viver do que com a prosperidade, que parece sempre muito eventual, artigo de luxo difícil de acostumar, taça tão delicada que achamos que mão a qualquer hora pode destruir. A realização de um sonho pode ser mais frustrante do que a sua escada pelo vão da porta. Voltei a ouvir a vassoura e o esfregão no corredor do prédio; o vizinho do lado tem um cachorro agora e ele late bastante aos sábados, assim como todos os outros dias da semana; os carros continuam buzinando e, quando eu acordo, demoro algum tempo para reconhecer o sábado em meio aos sons muitos semelhantes com os da segunda, terça, quarta, quinta e sexta-feira.

  Hoje, pela manhã, começou a chover enquanto eu fazia o café, deixei a água no fogão e fui até a janela da frente para fechá-la e vi o ex-baterista. Cabelo raspado, cara de sono, comum, estudante universitário, rosto cansado, achei-o triste. Mas não sabia se era dele, a tristeza, ou se era a minha que eu via nele. Ainda não o tinha perdoado pela interrupção das nossas aulas. 

  De qualquer forma, acho que experimentar uma realização também não é da dimensão da natureza, tudo é aprender. Um sonho realizado não nos salva da vida, só mostra o quão insatisfatória pode ser uma realização. Antes de fechar a janela, trocamos olhares, dei-lhe meu sorriso de uma gratidão mais funda e voltei para o café. Ele só levou a bateria, mas a lembrança da música dele, assim como a do violino, ficará para sempre na minha história.Os meus sábados são outros porque, um dia, o som do empenho de dois meninos, me convidou a sair do sono. Dias de chuva assim me fazem ficar amarela de alegre por dentro; funciono ao contrário. Não espero mais as lições de música. Não dá para ir além daqui sem levar o que já tenho aqui. A música da rua é a rua. Aprender a ouvir é tão importante quanto aprender a deixar de ouvir. Levaram o violino e a bateria, mas os sábados continuam comigo.



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