segunda-feira, 27 de junho de 2016

Eu quero ir bem alto, me empurra?

  No instante seguinte da decisão da necessidade de um esquecimento, a lembrança se torna irremediavelmente mais forte. É como querer abandonar um filhote de cão e ele sempre voltar, correr, alcançar o calcanhar do dono e puxá-lo pela bainha da calça. Não há cura; não há decisão nossa que faça o cão ir embora. Então, nos abaixamos, olhamos bem nos olhos de pedinte dele e nos sujeitamos ao destino de ser o dono do cão de novo. A memória é desobediente, tem tempo e escolha próprios, não se submete à necessidade alguma, não apazigua uma alma atormentada. A memória não é o lugar de paz.

  Querer se livrar de uma lembrança é tê-la ainda mais nítida, levá-la mais agarrada ao centro do peito, é tentar apagar um desenho na calçada e a cada balde de água lançado, mais visível a imagem se torna.  Nem esfregão, nem detergente ou solvente químico, as tintas se entranham nas fissuras do concreto e se reforçam no esforço de apagar o que não quer ir embora.
- Não vou mais pensar nele antes de dormir, amanhã eu esqueço-o completamente.
Mas, então, o último pensamento antes do sono nos levar é exatamente a imagem que não se quer e a invocação do desejo de esquecer. A lembrança virá sim, porque a tinta não sairá apenas porque queremos muito.

  Há tanto tempo que afago o mesmo cão, há tanto tempo que não carrego mais os baldes, há tanto tempo que deixei que a última imagem da noite viesse sem resistência, que ela aparece cada vez menos clara, perturbadora ou indócil. Fervo a água, faço o chá, apago as luzes e a memória não me assusta mais, ofereço a ela um a beirada da minha xícara e do meu conforto de calmaria.
- Fique, assistimos a um filme, lemos mais um capítulo do livro e você vai quando quiser.
  A lembrança não responde, acho que, de início, até se sentia ofendida com a minha oferta e a minha ousadia de entrega. Suspeitava das minhas intenções de presa que se coloca a frente do caçador. Mas, depois, foi se afeiçoando a mim de um jeito de não me querer mal. De antes do último gole de chá, antes do filme chegar pelo meio ou eu virar uma página do livro, ela me abandonar sem alarde. O desenho no asfalto foi se apagando com a chuva, com os pés dos desconhecidos que o pisam todos os dias.

  Viver é lembrar, é, dolorosamente, estar acompanhado de uma imagem de quem já partiu ou que você queria muito que nunca tivesse existido. É estar exposto a todo tipo de perturbação porque um cheiro, um gosto, uma voz, um sorriso do qual tanto gostamos, um dia, não se dissolve por resolução nossa. Pode ser pesado, é, muitas vezes no começo, mas se reconciliarmos com a própria insistência da memória, respeitarmos o tempo da tinta, se deixamos que ela encontre o seu caminho, é possível dividirmos um chá antes do sono.
   
  Fui, durante a infância, todas aquelas vezes ao parque, esperando brincar no balanço, mas esteve sempre ocupado. Sempre chegavam antes e se demoravam lá. Nas primeiras vezes, eu sentava em frente a brincadeira que eu queria que fosse minha e esquecia todo o redor, quanto mais desejava o balanço, mais a outra criança se embalava no ar. As manhãs no parque quase não tinham proveito, até que passei a gostar também de outras distrações. As sombras das copas das árvores formavam desenhos no chão, que eu descobria cada vez com maior agilidade, aprendia o jogo de damas com os homens, nos intervalos de suas apostas, recuperava a bola que caía para fora da quadra e sorria para novos amigos na devolução. Quando não vi mais o balanço, nem insistia em desejar que ele fosse meu, misteriosamente ele passou a ficar desocupado.

  Alguém sai e você nem vê. Olha para o balanço e pensa que ele pode ser para sempre seu. Aproxima-se devagar, com medo de alguém interromper o encontro, senta no balanço, ele é seu, o céu também é seu agora. Dá um impulso longo, aperta bem as mãos na corrente, solta o corpo e inclina a cabeça para trás. O céu é azul de alegria e aproximar-se e afastar-se da plenitude do universo é o presente mais bonito que a paciência e o tempo lhe deram. Uma dezena de subidas e descidas e o balanço fica, de repente, sem ninguém. Alguém nos deu sem saber, sem vermos quanto tempo ele passou vazio e o devolvemos a um outro alguém que não vemos.

  A lembrança é o balanço desejado do parque, um dia se esvazia e nem sabemos determinar o que se deu. Só aparece livre, possível e presente nosso. Um dia, antes de dormir, outra imagem virá, então eu saberei que o que eu gostaria de esquecer, finalmente, abandonou o balanço.




Nenhum comentário: