terça-feira, 14 de junho de 2016

Este desconhecido a quem amei

  Os balões de festa murchos no fundo do salão, agora. A borracha colorida deles espalhada pelo chão, restos de uma beleza que parece durar pouco se a fria racionalidade observa, mas uma infinidade de tempos, de nunca mais se apagar se a alma entrega este retrato para a memória. As mãos retiram os balões cheios, robustos, vistosos dos arranjos, viram brincadeira, voam, pulam, são jogados de uma mesa a outra, até serem definitivamente estourados. Bum! A apoteose dura menos de um segundo. Susto, risada, vamos ao próximo. Quantos restaram?

  Nos copos descartáveis dois ou três dedos de bebida, que esquentaram, ficaram esquecidos na mesa e, agora, atraem moscas. Papéis coloridos, pedaços de fitas acetinadas e migalhas de comida fazem pequenas massas gordurosas, brilhantes e dispersas no chão, que horas antes,  era  liso, limpo e espelhado. O lugar agora é a imagem de um final desolador. Vão-se todos, mas antes, roubam qualquer vestígio de beleza: os origamis, os arranjos das mesas e até as frases que decoravam as paredes; nada fica, só temos despedida servida a frio.
   
  Acabou e eu nem me lembro quando foi. Acabou e nem sou capaz de dizer a última música que tocava quando terminou. Mas lembro da primeira, da segunda, lembro dos balões vistosos, da bebida farta, das luzes que coloriam o teto, imitando as estrelas, os cometas, a imensidão do universo que a gente a todo custo tenta , sempre inutilmente, imitar. Lembro do chão intacto, das cadeiras enfileiradas, das mesas organizadas e dos olhos correndo pelos detalhes delicadíssimos. Não sobrou nada e nem vemos quando mesmo profanamos a beleza para sempre.

  Passo em frente ao salão de festas da rua debaixo, o carro do buffet acaba de estacionar, significa que daqui uma ou duas horas deve começar uma nova comemoração, tento atravessar e mudar de calçada para não atrapalhar o movimento, mas o trânsito a esta hora é intenso e eu teria que voltar para este lado mais a frente, resolvo então permanecer e só desviar-me com cuidado. Passo colada ao carro e escuto o choro alto, as súplicas, a exaltação do motorista, que desesperado pede para que seu interlocutor não o deixe. Suponho um rompimento, é véspera do dias dos namorados, a vida de alguém será comemorada no salão nas próximas horas e um homem se dobra de dor e desespero sobre o volante. É a vida sendo esse círculo de grandes alegrias e desesperadoras derrotas; de descobertas mágicas e de aterradoras rotinas; esse inferno e paraíso que coabitam, que se atropelam e nos levam a subir lívidos ao ponto mais alto da onda e por ela mesma sermos tragados, logo depois.

  A festa acaba. É preciso que esse final aconteça para sabermos que houve um evento específico em que se comemorou, bebeu, dançou, amou, sentiu-se nobre, viu as luzes, até as mãos começarem a estourar os balões. O difícil não é afastar-se de quem agora está a nossa frente, porque este é um final de festa, um balão murcho, mas é doloroso afastarmos da lembrança das primeiras vezes em que os olhos nos fitaram profundos, da primeira música, do sabor do primeiro pedaço de bolo, do gole primeiro que escorregou pela garganta, dos abraços de chegada esperada.  Mas a festa  acabou e nem vimos seu fim se jogar pela janela.

  Não vejo onde se perdeu, qual mesmo foi a palavra de fim, quem disse, quem anunciou ou se não disseram nada, mas abaixaram a música aos poucos, desligaram cada lâmpada por vez e foram parando de nos servir; tudo sutilmente, até estarmos no escuro, sem comida e sem música. Dói abandonar o salão, não este imundo, pobre, vilipendiado por qual passamos agora, mas aquele brilhante, sofisticado, aquele que nos seduzia pela promessa de felicidade. E que nos perseguirá em cada lembrança, mesmo que ele, assim, não exista mais. Escorrega no resto de um balão, afasta o enfeite pendurado no alto que começa a descolar, pega o casaco pendurado, prefere não levar o chocolate com a letra do nome do homenageado e  chama um táxi. A festa acabou. Esse desconhecido a quem eu amei e não sei como dizer ao telefone que a última música já tocou há tempos.

  O motorista abre a porta do carro, encosta na parede em frente ao salão e escorrega até o chão com uma das mãos na cabeça. O soluço é alto, os pedidos são desesperadores, mas só ele resiste no piso sujo, em meio às moscas, no silêncio, solitário, no escuro; o interlocutor também sofre pelo fim que viu com atraso, mesmo que tenha percebido antes do homem que chora agora na calçada. Acabou. A festa só dura o tempo de guardarmos o seu melhor na memória e, isto, ainda que hoje seja dor, um dia será o bastante.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Ler Amanda me atrapalha a produzir até o momento que começo a navegar em águas claras. É um turbilhão – o que faz a protagonista? O que faz o amor, a nobreza, o altruísmo e a tristeza, tudo junto e misturado?

Lógico que delirei um pouco ( Um pouco? Ora, direis ouvir estrelas ...), larguei o documento que tem prazo para ser entregue e fiquei aqui olhando a tela, relendo o texto tão bem escrito. Aí pensei no humanismo de Goethe e voltando os olhos ao humanismo helênico, onde os gregos consideravam a natureza como um cosmo, sujeita à ordem e da legalidade; infinita e poderosa. De certa forma, foi este o fundamento da existência do indivíduo que só se torna cidadão quando percebe que a lei universal é a sua própria lei, senão vem o caos.

O caos ... a dor ... as memórias aflitas, as aflitivas e as que doem. Há aquelas que batem na gente e as que machucam só de existirem. O fim da festa não acaba com o amor.

Mas isto é muito viajado. Não posso entrar aí, senão não voltarei ao trabalho. Outra hora a gente conversa. Acabo de achar uma proposta para meu trabalho que estava perdida. Valeu!

Amanda Machado disse...

Sim, Paulo. Exatamente isso: "O fim da festa não acaba com o amor", seria mais fácil se acabasse...por isso a dor, a angústia do fim da festa e o amor ainda lá. Adorei as referências...como sempre!

Que ótimo que os documentos suspensos puderam ser revistos e o trabalho não foi perdido. Abraços! ;)