sexta-feira, 24 de junho de 2016

O homem sem tamanho

   Já o vi muitas vezes e por isso, agora, nos primeiros segundos que o encontro em algum lugar tento me lembrar de onde nos conhecemos, mas  nunca ouvi sua voz e acho que até ouvir a voz de alguém, por mais vezes que eu o tenha visto, ele permanece completamente desconhecido. Sei do seu rosto, seus amigos, seus programas, mas da sua voz não sei, então não posso saber dele. Mas mesmo que nunca saibamos um do outro, percebo as nuances que voz alguma seria capaz de revelar. É um homem de estatura baixa, bem baixa mesmo, é sempre o menor do grupo, se está de costas e boné parece um menino. Ele nunca é o primeiro escolhido pelo garçom para entregar a conta, o homem que vende flores não oferece nenhuma das suas rosas para ele, os guardadores de carro se inibem na abordagem, porque nunca pensam que ele é o motorista. É um homem pequeno; acham. Como eu achei, da primeira vez.

  Mas a cada encontro, mesmo que ele continue o menor do grupo, meus olhos procuram por ele e, sem pudor algum, o perseguem. Ninguém parece mais interessante do que o homem de estatura modesta. Seus movimentos são econômicos, delicados, não abusa dos espaços que poderia alcançar por justiça; a voz não se altera e é modesto de copo, porque não o vejo beber muito e de pedidos, porque quase nunca interrompe um serviço ou requisita a presença do garçom. É um homem pequeno que não parece tentar compensar a baixa estatura com gestos teatrais. É um um cavalheiro de romances antigos, esse homem.

   Numa das vezes em que o vi, ele tinha um livro do Pessoa nas mãos, acho que era o "Livro do desassossego" - era Pessoa, estou certa, mas talvez a obra seja invenção minha, não saberei - mas o caso é que vê-lo na companhia de um poeta tão caro o fez maior para mim. Ele passava as páginas do livro e eu tentava adivinhar os versos que ele lia. Depois, teve aquela vez em que ele arrastou um dos amigos da sua mesa para fora do bar, que bêbado se exaltava com alguém  da mesa vizinha, achei-o forte, porque deteve o amigo com o dobro da sua altura, sem muitos esforços físicos, eram só conversa e gesto suave. Da vez que o vi com duas crianças, comprando sorvetes e fazendo piadas, ele cresceu ainda mais, porque um adulto que se comunica livre com o universo infantil é mais profundo, tem memória de uma vida que foi logo ali. Em cada encontro nosso, ele muda de estatura, ganha centímetros de admiração e metros de curiosidade: o que carregará de novo no próximo encontro?

  Ele está no bar do outro lado da rua e mesmo que em poucos minutos, desde que chegou, tenha sido ignorado pelo garçom, pelo vendedor de flores, pelo guardador de carros, por duas ou três mulheres de saltos altos, ele continua com voz, gestos e olhares pouco ambiciosos. Parece sempre muito seguro do seu lugar no mundo, mais do que modéstia ou humildade, parece certo do seu tamanho. No final, somos todos muito pequenos mesmo, especialmente quando tentamos ser maiores.

  Agora, parece que vai ao banheiro. Se levanta com a calma azul do mundo, sem desespero, afetação, sem balançar a mesa, arrastar a cadeira, até ranger o piso ou pisar nos pés de alguém. Passa entre as mesas, faz desvios com o corpo como um bailarino sem plateia, que ensaia sozinho, disciplinado, entregue à sua arte: dobrando articulações, testando a flexibilidade dos músculos, encontrando o ritmo exato que equilibre gesto e música. É um homem que não se submete aos olhos de ninguém, que não se humilha, pedindo atenção. Meus olhos o perseguem, acho, exatamente pela falta do pedido. Meus olhos o escolhem, porque ele não depende deles. O garçom traz a conta e mesmo que ele seja o primeiro a seu alcance, ele o ignora e confere a um outro rapaz a responsabilidade de portar a dívida do grupo.

  Todos se preparam para sair, ele não tem pressa,  é o último a se levantar, uma moça de pernas de flamingo e batom bem rubro passa, esbarra no homem menor do que ela, que pede desculpas e diz mais alguma coisa que eu não consigo saber o que é. Ela ouviu a voz dele. Invejo a moça comprida que sorri e o abandona no meio do bar, sem culpa. Ela ouviu sua voz, ela está mais próxima a ele do que eu, mas não pode perceber esse tamanho que os meus olhos foram descobrindo a cada encontro. Ela tem a voz, eu tenho a insistência dos olhos. O homem, embora seja um desconhecido para mim porque não o ouço chamar, tem me ensinado a ventura de ouvi-lo no silêncio, à distância. Ele é um bailarino que me me tira para dançar, sem coreografia ensaiada, a cada encontro, que eu não recuso, não ignoro e não esqueço que ele cresce a cada nova nuance descortinada.

  Somos todos muito pequenos quando queremos parecer grandes a todo custo. Somos maiores e muito mais profundos, quando não submetemos os nossos gestos a uma plateia de juízes. Somos do tamanho que quisermos se dispensarmos as fitas que não alcançam os poemas que trazemos nas mãos. Era Pessoa que ele carregava aquele dia, disso eu sei, mesmo que eu nunca ouça a sua voz.





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