quarta-feira, 22 de junho de 2016

No peito, o porto

  Contou os dias no calendário do telefone, acertou o quadro um pouco inclinado na parede, ordenou as  revistas por data na mesinha de centro, encheu mais um copo com água e encostou a cabeça no vidro da janela da sala. Sozinha, esperando pela consulta, pela secretaria ou por alguém que saísse do elevador e viesse fazer companhia. São mais de vinte andares debaixo da sala e a visão da rua é bonita lá de cima. A cidade parece ter outro ritmo, quando a assiste em silêncio, o trânsito é um amontoado de carrinhos insistentes que tentam ultrapassar uns aos outros, como na pista de brinquedo; a chuvinha fina que deixa o asfalto mais escuro e brilhante; os agasalhos coloridos das pessoas que ela talvez conheça, mas de cima, não reconhece. Não fazer parte da cidade, não ser um agasalho na multidão ou um carrinho desesperado é tranquilizador esta manhã. Veio ao médico, mas não tem gripe, nem virose, nem nada. Até ele abrir a porta terá alguma queixa, precisa ter uma, para desfrutar dessa vista.

  Esquece o calendário marcado, as revistas e o quadro que parece estar nesta mesma parede, antes do prédio. Se o médico abrir a porta, ela vai falar do peito. Pronto. Vai falar que mesmo nesses dias frios, já teve uma vela queimando no peito, sem serventia de iluminar nem aquecer. Só queimando no oco, no vazio, no fundo de uma caverna, solitária, como ela na recepção do consultório. Sentiu, pela primeira vez, essa mesma sensação há tanto tempo que nem sabe se o sentimento é como essas dores que vão e voltam ou é uma diferente, mas muito semelhante, a cada fisgada. Era só uma vela, sem perigo de incendiar, sem alarde nem balbúrdia, se a vissem na rua ninguém notaria, mas ela sufocava, se incomodava, teve um fogo no meio do peito, que muitas noites não a deixava dormir.

   Ou vai falar do navio, que é ainda mais grave do que a vela. Vai reclamar que sente, antes até deste quadro torto estar na mesma parede, um navio atracado no peito, sente o peso de uma ocupação sem frutos, de uma presença que ocupa sem fazer companhia. Um navio ancorado no coração, que ninguém vê, mas que por causa dele ela não ousa passos de dança, não pula os canteiros da avenida, nem assobia muito alto, com medo de sufocar, da respiração não dar conta do navio que ocupa e pressiona os vasos.

  Um navio grande, pesado, viajou até o seu peito e, de início, foi uma felicidade, sorria a quem passasse, carregava orgulhosa o peito pesado, a beleza do mistério não revelado, mas depois, veio o incômodo, a dor do encaixar a embarcação nos espaços delicados dela, do suportar o peso, a gravidade de levar consigo a dureza e a rigidez de um navio parado.

  Noutra vez também sentiu uma fonte, ali no mesmo lugar, no peito. Uma fonte que jorrava um líquido desconhecido, que não parava nunca, que variava entre a suavidade de uma corrente fina e um rio caudaloso que não sossegava nunca. Nas primeiras vezes em que o líquido se espalhou com mais pressão, sentiu que podia morrer, não de dor, porque não era físico, mas de medo, da desconfiança de não poder mais andar de agasalho colorido no meio da multidão, porque no peito tinha essa fonte, mas essa era também uma marca invisível. 

  Mas, agora, carrega o peso de um navio que não viaja. Um navio aportou-se na mansidão dela, depois da fonte, depois da vela, porque encontrou um espaço acolhedor, disponível para ocupações, mas, agora, ela quer vê-lo partir, para abrir espaço, deixá-la liberta do peso, da seriedade com que afasta as novas aproximações, porque nada mais cabe no peito. Ela tem um navio no coração e precisa de ajuda para tirá-lo de lá. Sonha em abrir as comportas e deixar que as águas pesadas carreguem a solidão pesada do navio que se aportou nela.

  A porta do elevador se abre, a secretaria sorridente e atrasada se aproxima, o silêncio da janela desaparece, a mulher pergunta se ela está bem, porque vê o copo descartável amassado na sua mão. Ela quer dizer que sim, mas a voz não chega. Entenderia até se fosse um nó, uma palavra ou grito parado na garganta, mas é o oco, a presença sem frutos que atravessa a traqueia. Obscura, às oito da manhã, derretida em vontade de choro, mas nenhuma tristeza escorre para fora. Preferia que fosse gripe. O navio há de ir embora dia desses.

No peito, um porto, na garganta, um nó; só. O médico abre a porta, pergunta interessado como ela está e ela sorri, porque não sabe fazer outra coisa, mesmo que o peito esteja em fogo, sob correnteza ou com o peso de um navio ancorado nas artérias.

- É uma tosse, uma tosse que não me larga. Tem cura para mim, doutor?

 Ele balança a cabeça, dizendo que sim, mas ele não conhece remédio que cure um peito invadido por vazio. Só ela pode expulsar o navio, só ela conhece os espaços do próprio coração.



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