quarta-feira, 6 de julho de 2016

Doze segundos para atravessar. Não perca o sapato.

  Do outro lado da rua a luz pisca, os números vêm em seguida, brilham  do doze ao um, até o sinal abrir. Se observar a troca dos números não atravessa, não há tempo. Se o olhar chamar para dentro de algum dos carros, se quiser cumprimentar alguém, também não chegará. Se o sapato, de repente, se soltar do pé, a decisão tem que ser rápida: abaixar, segurá-lo firme e levá-lo, correndo até o outro lado ou arriscar um chute para trás e adiar a travessia com o par completo. Os doze segundos são implacáveis e mesmo depois de muito tempo, nunca nos acostumamos a eles.

  Para uma passagem, os doze segundos parecem miseráveis, mas há, antes da instalação do semáforo, um estudo técnico que garante que são suficientes. Ficamos submetidos a um tempo que não olha para as luzes brilhantes dos números nem para dentro dos carros, tampouco cumprimenta qualquer alguém ou perde sapatos. O tempo entre o doze e o um é o da travessia isolada de vida. É a solitária jornada que não permite paradas, dúvidas ou desistências, depois da partida. São os doze segundos entre o começo de uma fala mal calculada e o seu término destruidor;  a porta batida na cara, no ápice da raiva, e ela aberta de novo sem ninguém do outro lado para o perdão. Os doze segundos são o não, filho do medo, que nos leva para a calçada do arrependimento e o sim, órfão de juízo, que nos largará no cruzamento da dor. Os doze segundos são fatalmente justos para não no permitirem a mudança de rota; depois do embalo primeiro, o destino é selado. Podemos até não seguir o restante do caminho, mas a travessia foi feita e desta ninguém mais nos recuperará; sua marca impressa na alma não sai com sabão neutro e água em abundância. Atravessar é nunca mais voltar ao mesmo lugar, do mesmo jeito.

  Com os doze segundos entre um lado e outro da rua, tenho intimidade, levo jeito porque tenho pernas longas, visão lateral desfocada, por isso nunca vejo os que passam do lado, não tenho curiosidade pelos motoristas da cidade nem sapatos folgados no pé. Os doze segundos do sinal cabem muito bem a alguém que se acostumou a eles e obediente, se perde os dois primeiros segundos, fica imóvel até o sinal se abrir e depois fechar de novo, para só então atravessar. Respeito os dois segundos perdidos e os transformo em minutos de paciência e aceitação.  O tempo de começar a passagem é o que define o seu final.

  Mas, agora, um homem de cabelos brancos e corpo franzino não tem a agilidade dos doze segundos e o motorista da caminhonete branca não tem a compreensão do tempo de alguém que passa a sua frente. Eu não tinha os visto, nem o homem idoso nem o dono do carro branco imponente. Porque eu precisava estar plena no meu próprio tempo, assim eu aprendi a sobreviver a esses números: nunca contar com ninguém nem permitir contarem comigo. Solitária, seguir em frente.

  Em quinze segundos, quando já estou há quase quatro do outro lado da rua, um barulho me faz voltar à vida dos outros. O carro branco e o homem de cabeça branca passam num mesmo tempo. Agora os vejo, acabo de conhecer duas vidas conectadas pela imprevisibilidade dos doze segundos com os quais eu já havia me habituado tanto. Um homem idoso caído no chão e um motorista desesperado ao telefone. Penso no meu pai, que nem o registro conhece o nome, penso no meu avô, morto há mais de uma década, penso em mim, tão viva da passagem, por que nós três sobrevivemos a tantas travessias, será herança? Ou a sorte de não perdemos os sapatos nos doze segundos?

  Somos um grupo, agora, os números continuam brilhantes, urgentes, mas a rua é nossa, carro nenhum há de passar. O idoso no chão está lúcido, acordado e tenta acalmar o motorista do carro branco. Uma mulher cobre com seu cachecol vermelho as mãos do homem imobilizado no asfalto, que começa a sentir frio. Um homem oferece água, mas outros dois acham melhor não dar nada, por enquanto, antes da chegada dos médicos. Um grupo de jovens começa uma discussão sobre quem estava errado, sem se atentarem que, neste caso, só o tempo é erro. A polícia chega, abre caminho para a ambulância e a rua começa a ser esvaziada. Vão no mesmo carro branco, agora com sirene em cima, o velho com o cachecol vermelho, agora do lado, na maca, junto com os seus pertences e o homem assustado, que chora de vez em quando.

  A mulher que cedeu o cachecol, o homem que ofertou água, os dois outros que acharam melhor não, os jovens do grupo de debate, todos já foram embora. E o semáforo continua a exigir uma travessia certa de doze segundos. Eu preciso atravessar, porque na confusão fiquei do lado oposto ao que estava, calculo o tempo da saída, se adiar o tempo passa, se antes, o carro é que passa. São os doze segundos que eu preciso, de novo, passar para um outro lugar e de lá, saber que já sou outra.  A passagem de uma rua, a mudança de lado, a travessia que finalmente precisa ser feita, se eu não perder o sapato, chego do outro lado quase ilesa.




4 comentários:

Paulo Abreu disse...

Prezada Amanda,

Este seu leitor que não perde suas postagens está aqui contemplativo. Quanta lucidez em um texto há de comover o outro a nos perceber enquanto seres vivos e vívidos? 12 segundos ... Na nossa familiaridade com o judaismo, temos que 12 foram os filhos de Jacob, 12 foram as tribos respectivas, 12 são os meses que nos envelhecem e nos separam da infância, do amor perdido, da paixão, das travessuras. 12 são os apóstolos. etc.

Os babilônicos estabeleceram sua base numérica em torno do 12, que era a cifra essencial de seu sistema, pois o espaço e o tempo tinham sentido em relação com o doze: doze esferas, doze meses do ano, doze horas diurnas, doze horas noturnas, doze signos e doze casas do zodíaco.

O doze, a dúzia. Estamos todos interligados por esta mística. Neste processo vemos a vida passar. O outro ... Hoje, como sempre, você, tão delicada, demonstra com clareza de que no universo feminino haverá sempre entre a sola e o salto a atravessar o espectro prismático da vida, a percepção do outro traduzido em sentimentos nobres, que permitem que a vida siga para os próximos 12 segundos. Uma aula de antropologia neste mundo whatsapp. (PS - eu ainda reluto contra esta modernosa relação asséptica e mantenho meu Nokia original de teclas, sem remorso algum)
Um abraço,

Paulo

Amanda Machado disse...

Que leitura mais atenta, sensível e acertada (para não variar!), Paulo. A mística dos 12...tem toda a razão! Gracias pela leitura e pela reflexão, ela está comigo agora.

PS: Faz muitíssimo bem em permanecer com o seu Nokia, resista o quanto puder! Arrependo-me de ter sucumbido, felizmente não completamente, mas a cada dia mais, ao mundo limitador do Whats...um ótimo final de semana!

Paulo Abreu disse...

Então, eu comecei a falar do Nokia por que ele tem 12 teclas e esqueci de escrever esta parte que o colocaria no texto/contexto.

Amanda Machado disse...

Ah sim...rs. Faz todo o sentido!