quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Foi embora sem bater o portão

  Ontem foi embora. Não foi surpresa, essa era uma ida  planejada, como outras também foram, mas nunca aconteceram - um dia, alguma vingaria da gestação complicada -  a mala eu mesma ajudei a fazer. Dobrei as roupas, retirei as que não estavam suficientemente limpas ou novas, cerzi buracos, preguei botões, levei sua calça favorita, já desmaiada de cor, à tinturaria, pedi para que pintassem de nova um passado do qual não gostaria de se desfazer. Lavei cada peça amarelecida, esperei secar do lado do varal, depois borrifei lavanda e passei colarinhos, mangas e, ritualisticamente, fiz vincos nas calças de tecido. Não me pediu nada, mas eu me despedia em cada parte de tecido limpo e bem passado que eu colocava em sua mala. Costurei um bolso interno em cada casaco seu, para que guardasse notas de dinheiro para possíveis emergências. Preparei-o para uma  guerra, mesmo que achasse bom se ficasse.

  Ontem foi embora e eu escrevi bilhetes, espalhei pelos bolsos das calças, nas dobras dos casacos, nas mangas das camisas. Assinei em cada dobra de roupa, como se marcasse um caminho, fui João e Maria, espalhando migalhas de pão, ainda que eu conhecesse a tragédia dos irmãos e soubesse que os vestígios, fatalmente, se perderiam. Nos bilhetes, só as frases pelas quais eu gostaria de ser lembrada; partes de poemas que eu gosto, trechos de músicas que ele canta, expressões de filmes famosos que gostamos de repetir.

  Ontem foi embora e eu limpei os sapatos que levariam os seus passos, a cada dia, para mais longe de mim. Lavei o tênis, depois das roupas, coloquei os cadarços de molho e enquanto secavam, passei cera nos sapatos e os lustrei com um pedaço de lã antiga. Quanto mais brilho nos sapatos, mais distante os caminhos ficavam. Como se o  meu empenho e a minha força, fossem as catapultas que o fariam voar  mais longe e mais rápido ao destino, onde eu não estarei. A minha decisão de despedida sem choro, custou trabalho, muito, que não comecei no preparo da mala, na compra das passagens ou nos jantares de despedida; começou no dia mesmo do encontro, no dia que ele veio para mim. O ficar custa sempre a promessa de deixar de viver uma outra vida e isto, nunca fui de pedir o cumprimento.

  Ontem foi embora e eu fiquei ali, no batente da porta, querendo que ficasse, mas muito certa de que é preciso que se vá, que ganhe outros céus, se ilumine noutros sóis, ouça outras línguas, sotaques, experimente outras comidas e, no novo, também aprenda a se reconhecer. Fiquei desejando que fosse bem feliz, que as notas de dinheiro fossem bem empreendidas, que não ficasse muito doente nunca, que amasse outras pessoas e jamais pudesse me contar tudo, porque o que os seus olhos vissem, fincassem direto na sua alma; sem fotos, vídeos ou relatos em mensagens de áudio. Eu penso que arrumar a mala de alguém a quem se ama é amar mais. O  amor é arejado; é espaço amplo, só quem entende essa liberdade é capaz de cantarolar uma música no corredor da despedida. Ontem foi embora, mas não bateu o portão.

  Não tenho medo que não volte, porque arrumei a mala e vi o que de mim cabia ali. Me levou nos botões repregados, nos remendos, nas costuras, na tinta da calça que eu fiz questão de renovar, nas migalhas de pão, no brilho dos sapatos, nas golas cheirosas das camisas, nas frases de Pessoa, Borges, Pizarnik, Adélia, Florbela e Drummond, nas músicas do Chico, do Milton, do Vinícius e do Tom. Me levou nos planos em comum, nas ideologias opostas, no medo de ir e na minha coragem de amar. Me levou quando disse que não podia ficar e eu não pedi que não fosse.

  O conforto de dizer adeus na porta, de não me humilhar segurando as pernas das calças, de não simular orgulho e pedir para apagar a luz quando sair. Um inevitável choro meu, molhou seu ombro de camisa impecável e, mesmo assim, ele colocou, gentil, sua mala no táxi, mas ele não bateu o portão. Ontem foi embora e não combinamos uma volta, não se pede um regresso a quem quer descobrir um outro mundo. Mas se, numa tarde dessas da lonjura em que estiver, encontrar um dos bilhetes e pensar que não é feliz sem a nossa poesia, abro o portão e desfaço as malas que eu mesma arrumei um dia.



 

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