domingo, 30 de outubro de 2016

Para ela que não amanheceu hoje

   Ela não amanheceu hoje. Saio para caminhar logo depois da mulher ao telefone engasgar. Eu não demorei a entender, fiz todo o esforço que podia para poupar a moça de dar uma notícia dessas. Como falar? Como dizer que alguém tão próximo já não está, sem nem poder olhar nos olhos ou segurar as mãos? Por isso entendi tão rápido, sem certeza. No silêncio dela, depois de engasgar, eu compreendi tudo.
- Morreu? Você quer dizer que ela não está viva, não é?
- Sinto muito.
- Eu sei, também sinto.
E fui caminhar. Já estava de tênis, boné, fones de ouvido e tinha feito o alongamento. Então fui caminhar. 

  Sempre quando não sei o que fazer com a vida, quando uma dor é pungente, um nó aperta demasiado, quando tenho mais dívidas do que crédito ou preciso tomar um caminho e abandonar outro, quando descubro que não sonho, não amo, não quero mais, eu caminho. Ando pelas mesmas ruas de sempre em busca de uma solução, que eu sei que não estão nas calçadas ocupadas pelas mesas de bar, tampouco no asfalto com remendos, nos carros que buzinam, no colégio antigo onde eu nunca estudei, nas lojas que mudam os letreiros todos os meses,  nos semáforos que contam os segundos, nos anúncios de aluguel e venda, nos cartazes que buscam gatos ou pessoas perdidas, nas duas bancas de jornal ou nas três praças. Sei que não encontro as respostas olhando para o mesmo chão, mas é a única coisa a fazer. Não me dobro em choro, não ligo para ninguém, nem me deito, eu caminho. Caminho com uma violência desesperada, fugindo ou indo ao encontro, ainda não sei. 

  A tia abandonada na calma, na poltrona, nos dias da semana dos outros. A tia que não vai às festas de família, não tem feriado, não lamenta quando a noite de domingo se aproxima. A tia sem religião, que não vai aos templos, igrejas ou florestas ritualizar, abandonar oferendas e fazer pedidos. Ela que não tem patrão, marido ou pai e que os irmãos só a visitam uma vez por semana, se não chover muito. Ela que não tem celular, TV a cabo e só escuta as músicas que a rádio toca. Ela que não toma chá ou cerveja com um grupo de amigas, nem compartilha intimidade. Ela que se comunica por letras que sempre faltam em uma caderneta rosa.
- Mas, tia, está faltando letra.
  E ela balança os ombros, como quem diz: "se vira". Eu aprendi em cada letra que não estava lá. Li as respostas dela mais nos olhos escuros profundos do que nas letras azuis na caderneta. Eu nunca a alcancei, nunca a compreendi, por isso sempre a amei. Do melhor amor, daquele que não sabe como é, só tem certeza de que é.

  Eu também ia uma vez na semana e me sentava com ela num banco de cimento, de costas para um passado que não tivemos, com a afinidade obrigatória do parentesco e o meu medo remoto pregado nela. O abacateiro, eles cortaram e ela escreveu sobre isto um dia. Eu esqueci-me da sua voz, porque há mais de quinze anos ela nem ao menos sussurra, mas acho que deve ser parecida com a da outra tia: baixa, delicada, limpa. Ela sempre olhou para mim, buscando sinais de algo que eu suspeitava, mas não tinha certeza. Examinava se as minhas unhas estavam esmaltadas, se eu estava em boa forma, passava as mãos sobre a minha barriga sem pudor, soltava os meus cabelos e analisava o estado. Era sempre um teste visitá-la, acho que eu passei na maioria deles. O silêncio, de mais de uma década, dela foi precedido por um abandono completo, por isso me examina. Não tomava banho, não se alimentava, não saía de casa, não ligava para ninguém e esqueceu-se dos remédios.
  O sinal abre para mim, atravesso correndo, mas um carro ultrapassa e quase me carrega. O homem buzina, aparece com o rosto na janela e grita para mim, mas eu não sei nada do que ele diz, eu não estou aqui. Eu, hoje, custo a amanhecer.

  A loucura no sangue dela, a falta de entendimento dos outros. Ela que perguntava sempre se eu não tinha casado ainda. Porque era costume achar que o casamento afastava  a loucura da vida de uma mulher. Minha tinha não casou. Quis desviar de mim o fardo dela. 
  No caminho, depois de quase ser atropelada, encontro com o velho vestido de preto que sai todos os dias e tenta ajudar a sua cadela ser sociável com os outros cães. Ele quer que ela tenha os amigos que ele não tem. Mas a cadela é tão indócil quanto o dono e desobedece, late, ataca os outros cães. Solitário, ele insiste com a cadela. Chama para conhecer mais um cão que logo ela reprova. Ele destaca as qualidades dos pretendentes:
- Olha, Mocinha, a mesma raça que a sua.
  E ela só estranha, late. E, finalmente, recusa qualquer aproximação.
  Não, tia, não casei. Não, tia, eu não caso. Minha tia é o velho e eu sou Mocinha, assumindo os riscos da loucura que me cerca.

  O homem de casaco preto volta com sua cadela tão solitária quanto quando saíram e isso lhe dá tristeza, por ela, que carregará uma solidão tão dura quanto a dele, mas também enche-o de orgulho pela semelhança da sua insistência. Cadela e dono são arredios. Não adianta querer que o outro ande um caminho apartado de quem ele admira. 
- Veja, Mocinha, a vida solitária é dura. Mas se quer, não posso fazer nada.
 
  Volto para casa e a tia continua anoitecida. Caminhar nunca desapareceu com nenhum problema meu, mas eu sempre soube que não o faria. Olho no espelho do banheiro e não me pareço com ela, em quase nada. Enterrada a tia, leva com ela o meu medo mais remoto. Agora, não sei se sou liberta e me firmarei na coragem ou se a minha vida, perdendo a referência do medo, vai também estar perdida, solta na amplitude de um mar que não vê continente. Não casei, tia. Não enlouqueci e nunca pude compreendê-la, não como os outros que a achavam estranha, eu nunca a achei, mas como má leitora que demora muito a descobrir as letras que faltam. Eu nunca soube ler a caderneta, tia, mas amei você. Como a cadela ama o velho: sem saber como, só com a certeza de que é.  



Nenhum comentário: