quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Hoje não

  O vendedor de empadas passou com o carrinho vazio, um homem corre atrás do ônibus, que já estava partindo, um outro vê a iminência de uma perda e bate na porta, pedindo ao motorista que espere, ele para, abre a porta, o homem agradece ao desconhecido que fez a gentileza,  joga seu corpo e a bolsa dentro do coletivo e suspira de cansaço, susto e alívio. Tem sentimento na respiração profunda e cantada dele, ninguém ouviu a música.
  O menino quer picolé, a mãe diz que hoje não, ele insiste, ela diz o "hoje não" com mais verdade, olhando para ele com a sobrancelha levantada, ele se senta acostumado com os sinais da mãe. O segundo não é definitivo, não arrisca um terceiro. Eu também não tentaria.

  Duas mulheres conversam, falam sobre a funcionária recém contratada: uma gosta dela e a outra diz que não, acha-a lenta para ficar no caixa.
-  Vai se enrolar quando o movimento de final de ano aumentar.
   Um homem segura seu filho, enquanto sua mulher toma um milkshake de morango, eles esperam pelo táxi e o cheiro do copo dela me embrulha o estômago. Nas últimas semanas o meu olfato está ainda mais apurado. Ouço muito e sinto cheiro de coisas que já nem existem.
- Não tem café? Mas tinha, há pouco. Porque a casa está com cheiro de café.

  Talvez não enxergue bem, não tenha memória para nada, talvez não seja inteligente como gostaria nem tenha a agilidade para trabalhar como operadora de caixa. Talvez nem saiba a hora de me levantar daqui e ir embora, mas a minha audição e olfato causam sempre espanto, ultimamente até a mim têm surpreendido.

  Tenho sentido cheiro de borracha queimada, de motor muito aquecido, de perfumes diversos, loções de barbear com e sem álcool, cerveja da noite anterior, chiclete de menta das atendentes, de flúor do menino com a mãe. Então, estavam no dentista!
  O táxi chega, o casal se levanta, a mulher ainda toma a bebida de morango e o pai se ajeita com o bebê no banco de trás do carro. Vão embora e o cheiro do milkshake ainda durará por mais três dias aqui. Uma mulher me aborda, olha para o meu rosto e demora a começar a falar, fico inquieta, ela gagueja, tenta duas vezes, me acalmo e ela respira mais profundo e na terceira vez, me pergunta sobre o ônibus que poderá levá-la até um supermercado do bairro depois do hospital, eu explico, o ônibus chega e ela deixa o cheiro de um xampu que eu reconheço.

  Há vinte minutos a chuva começou e eu não saí do lugar, venta muito forte no decote da minha blusa errada para o dia, o tecido da calça balança e os cheiros chegam de todos os lugares. Não tenho guarda-chuva hoje e meu livro não cabe na bolsa. Fico por ele, fico porque não quero me molhar hoje, fico porque o decote da minha blusa sugere um resfriado, mas fico, sobretudo, porque não sei aonde ir. Ficarei até a chuva passar, até eu me lembrar de um lugar em que eu realmente deva estar.

  Esquadrinho as pessoas que nunca mais verei, se ver talvez nem reconheça, sinto seus cheiros, ouço os suspiros e conversas, me solidarizo com o menino sem o picolé, depois do dentista, era uma recompensa e a mãe nem entende. O filho entende o não, a mãe não reconhece o merecimento. Quero tomar um milkshake de morango, acho que nem vou gostar, mas nunca fiz isso na vida e se for o que eu preciso? Torço para que a nova funcionária seja ótima, desejo a eficiência que a outra não enxerga nela.

  Olho para o céu e a chuva apaziguou. Mesmo que não pudesse me levantar, algo me levaria. Tudo termina nos dias de quinta-feira, quando até as águas insistem na permanência. Resolvo me levantar, antes que esfrie ainda mais, coloco o livro debaixo da blusa, aperto-o contra a minha barriga gelada e dispenso os automóveis, ainda não sei aonde deveria estar, mas ninguém ficará aqui. O lugar é de passagem, desço a avenida debaixo de uma neblina, mas o livro está protegido. Aperto o interfone e digo :
- Sou eu!
  Pronto. Está aberto. Sem maiores explicações sobre o que isso significa. Devo estar no lugar certo. Chego em casa molhada, tomada por cheiros, suspiros, gestos e olhares, tudo  impregnado na blusa errada para o dia, tenho pena de lavá-la e apagar as histórias que eu vi passar. Talvez aqui também não seja um lugar de ficar, mas a segunda vez que mãe falou ao menino "hoje não", também me deixou sentada, sem me arriscar em uma terceira tentativa. 




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