terça-feira, 27 de dezembro de 2016

É solitário caminhar na lua

   A última vez que ele comeu o pedaço de bolo de carne na cozinha de casa, a última vez que ele tomou um café naquela xícara com a borda lascada, a última vez que ele viu amor nos olhos de alguém a quem também amava, a derradeira ida ao posto de combustível abastecer o carro, a mão ajeitando o para-brisa torto, os beijos, os abraços, um afago na cabeça do cão e os olhos dele, entranhando em algum lugar que não sabe onde, a preparação, a  coragem da despedida.
  Quando olhou para trás, pela última vez, sabia que caminhava, definitivamente, para longe do habitual e seguia o destino solitário de ter o que nunca ninguém mais teria. Quando o último passo se acomodou na direção oposta do ordinário, soube que os  pés seriam outros, se voltasse.

  Quando finalmente colocou seus pés na lua, quando a ciência, a obstinação, o trabalho de muitas mãos, a coleção de calendários, marcados com caneta vermelha, substituídos a cada final de ano o colocaram na superfície etérea, ele sentiu a miséria do arrebatamento solitário e a opulência de uma felicidade que permaneceria, para sempre, inédita. Não deve ter sido fácil ser um homem que pisa na lua pela primeira vez. Explicar os sentidos, tentar aproximações com o já vivido, os sentimentos que ninguém poderá mesmo alcançar, ser uma celebridade histórica, debaixo de uma armadura impossível de ser corrompida.

  A lua, a frase ecoando pelo mundo "um pequeno passo para um homem..."; os pés, o passo compartilhado, reproduzido em massa, comemorado, vendido, publicizado. Finalmente um homem na lua e o homem era ele, que um dia comeu bolo de carne, bebeu café na xícara lascada, viu olhos de amor antes do embarque, foi ao posto e encheu  de gasolina o seu carro popular, tentou acertar as hastes tortas do para-brisa, beijou, abraçou e se abaixou para afagar o cão. O homem andava pela lua e mais ninguém o acompanhava, só ele via, ouvia e, principalmente, só ele poderia sentir o que era ser um homem comum a andar, pela primeira vez, na lua. 

  Não teve caminhada longa, bolhas nos pés, dúvida diante de alguma placa, parada para informação nem um passo de dança ele teve tempo de arriscar. Ele era um homem da ciência, esteve há muito comprometido com o projeto,  previa a atmosfera, a gravidade, os níveis de cada elemento que precisava garantir para sobreviver e até as emoções que precisaria controlar. Mas foi pisar na lua e a  felicidade descia a corredeira de lágrimas. Foi só ter consciência do feito e dizer a frase,  que já estava condenado a carregar o peso da impossibilidade de partilha até o fim dos seus dias.
  As fotos, os vídeos, todas as entrevistas, respondendo as mesmas perguntas por décadas, nada explicava, de fato, o que era caminhar na lua, pela primeira vez.

  Esteve na lua, deu um pequeno passo, que também era grande, só que para uma humanidade inteira e ninguém nunca soube mesmo o que era. Nunca mais olhou para a lua com os olhos empoeirados de terra; a experiência dele com a vida era única, mas impossível de partilha.

  Caminhou solitário pela lua e depois voltou. Quando chegou em casa, tirou os sapatos, sentou na poltrona cinza, com a mesma mancha de vinho tinto há uma década e falou da viagem como quem estivesse voltando de férias da Região dos Lagos; falou das dificuldades como quem quebra o carro na volta de um final de semana no interior de São Paulo; narrou seus dias como um menino que voltava de um acampamento. Tudo isto porque era o que tinha, era o que aproximava a sua experiência  das  referências que os outros poderiam  identificar. Não mentiu, mas também nunca conseguiu explicar o que era estar na lua.

  Todas as vezes em que bebeu o café na xícara lascada, ele se lembrou dos seus pés na lua. Todas as vezes que o para-brisa entortava ele se lembrava da lua e do que era caminhar por ela.  Se abaixou pelo cão, andou de mãos dadas com o amor, foi amado muitas vezes, mas andar na lua nunca ninguém alcançou. Há felicidade que não deveria caber num único peito, mas não sabe como rolar e alcançar outros corpos. Não há palavra em língua conhecida que explique, nem gesto ou expressão.  A melancolia em tê-la inteira para si é o preço da viagem. Mesmo que a caminhada seja irreversivelmente solitária, não há como negar a lua.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 31 de dezembro de 2016

Prezada Amanda
Linda em verso e prosa

E para não dizer que não falei das flores, feliz em tudo seja você a partir de agora. Que tudo seja perfeito feito João Gilberto, que as ações sejam fluidas feito o som de Tim Maia, que suas inspirações sejam jorgeluísborgeanas, suas loucuras sejam florbelas e sua vida seja feito um poema de Fernando Pessoa:

Ano Novo (Fernando Pessoa)

Ficção de que começa alguma coisa!
Nada começa: tudo continua.
Na fluida e incerta essência misteriosa
Da vida, flui em sombra a água nua.
Curvas do rio escondem só o movimento.
O mesmo rio flui onde se vê.
Começar só começa em pensamento

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, dia 01 de janeiro do ano que começa
Caro Paulo
Leitor-condutor

Desejos mais delicados e apropriados do que estes, não poderia receber de outro, que não você!
Quero a medida certa da voz de João Gilberto (nem demais nem de menos), o balanço do Tim, os sonhos de Borges, a passionalidade e entrega de Florbela, toda ela e, sempre que possível (todos os dias!?), os poemas de Pessoa. Quero-os para mim e para o mundo!!!

Um novo ano de boas lutas, sonhos que não se acabem e ótimas conversas, com café.
Abraços!
PS: adorei o poema! Obrigada