quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

O amor continua na calçada, produzindo ecos e afastando pedestres

   Seguro um copo de vidro vazio, no meio da cozinha, parada, sem sede, livre de pressa e decisão.
- Mais um gole ou lavo e guardo?
Não sei; a sentença é absolutamente fácil e eu não sei como responder.
- Talvez eu deixe na pia.
  Puxo o banco de madeira com uma das mãos e com a outra aperto o copo. O vidro é fino, tenho que ter cuidado com a fragilidade do copo que, agora, eu seguro com as duas mãos. Se apertar demais, posso estraçalhar o vidro, eu sei que posso. Se, ao contrário, afrouxar demais as mãos, ele pode cair no chão da cozinha e eu ficarei, por alguns segundos, ilhada por dezenas de cacos ao meu redor; até que eu proteja os meus pés, me levante, pegue a pá, uma vassoura, uma sacola vazia e recolha a minha incompetência, meu deslize, a falha de não ter sabido segurar um copo. Juntar tudo, depois de arrastar geladeira e fogão, inclusive, e  embalar em jornal, cuidadosamente. Como se fosse uma preciosidade a ser ofertada, amanhã, quando o caminhão do lixo buzinar na entrada da rua; saio sempre com o lixo atrasado.

  Não encho o copo, não o afasto, tampouco resolvo desistir dele, mas olho com familiaridade a sua transparência azulada e um pouco de medo, também,  para o único copo em iminente possibilidade de mudança de estado. O copo de  bordas finas e linhas arredondadas, tem uma pequena elevação no vidro, que eu nunca tinha notado - deve ser defeito de fabricação - resolvo conferir os outros cinco, mas não me movo.
- Ganhei esses copos da minha irmã.
Lembrei alto. Um dia apareceu com meia dúzia de copos que ela ganhou repetido de presente de casamento. Quando tomo água na casa dela, penso que a água é minha. Água não tem gosto, mas o copo tem memória. Na casa dela, a mesma água. O marido dela não gosta dos copos, eu me acostumei rápido com a fragilidade deles.

  Enquanto o copo permanece suspenso na minha mão, no meio da cozinha, lembro-me da visão de agora pouco. E  se eu acordasse, de repente, no meio de um sonho bom e na cena interrompida eu me esforçasse para voltar, dormisse de novo e o sonho seguisse, como um filme, obedecendo ao comando de quem segura o controle? E se houvesse a possibilidade de algum tipo de naturalidade, seguir como se nunca houvesse sido interrompido? Se o meu cérebro apagasse o acordar-de-repente e o esforço para o sono? Se, de manhã, quando eu estivesse na cama, lembrasse do sonho e de um sono contínuo, sem interrupção? Será que alguma vez isso aconteceu? Será possível esse comando esquecido? Ou no final de um caminho, decidir continuar a caminhar e não existir limite? Ninguém segura, nenhuma linha define o instante. E se eu largasse o copo e ele não se quebrasse ou eu o apertasse e o vidro resistisse? Se nada acabasse, enquanto eu dormisse? Eu me esforçaria para segurar o copo ou esqueceria completamente dele?
  
   Eu já virava a rua, já pensava em chegar em casa e tirar os sapatos, abrir a blusa - um calor insuportável e o suor escorrendo pelas costas - tomar água gelada e comer a melancia da geladeira. Mas então, eles apareceram de novo, vi-os mais uma vez, como sempre os vejo. E a imagem de ambos é doce, é serena, toma a minha atenção por completo e refresca a parte da cidade onde o vento não chega. É como se sempre os encontrasse pela primeira vez. Desde que entendi quem são eles e que tipo de relação existe ali; nunca mais atravessei a calçada, fugindo da desordem da dupla. Ao contrário, se os vejo, vou ao encontro. Já nem sinto o desconforto do suor, eles me servem de copo d'água, às cinco da tarde, com o sol brilhando no alto do morro, com um monumento ao imperador.

  O cão late para mim, a dupla ocupa a calçada inteira; ele e a mulher que puxa a coleira. Ela já esteve muitas vezes vestida numa camiseta amarela, hoje estava de camisa de colarinho de viscose, estampada de laranja. Mesmo que eu só a tenha visto na companhia do cão, eu a reconheceria facilmente sem ele, pelas camisetas de cores fortes, pela calça jeans de todos os dias, pela dificuldade dos passos, pela franja bagunçada caindo nos olhos, mas, principalmente, pela calma ancestral que a mulher ostenta. O cão é rouco, tem um latido desesperado, que dirige para qualquer coisa a todo instante e ela só sustenta a coleira; como se ele estivesse no controle do caminho de ambos.
Passei por eles e me alegrei, porque existem.

  Mas enquanto eu me afastava, pensei na idade avançada do cão, na dificuldade cada vez mais aparente da mulher de se locomover e do tempo que eu os vejo pela primeira vez. E, então, a goteira da melancolia começou a pingar no meu cabelo. Quanto tempo eles têm? Eles sabem que há um acordar-de-sonho, um final de caminho, um copo que se quebrará um dia, mesmo que se tenha absoluto cuidado? Por quanto tempo, ainda, a coleira vermelha durará?
  O latido do cão invade a minha cozinha, os ecos do latido rouco dele me acordam da minha tristeza por um copo que ainda não se quebrou. Certamente, se as mãos que seguram o copo fossem dela, o copo duraria muito mais. Ela sabe, com mais precisão e naturalidade, a pressão que se deve empregar em certas delicadezas. Nas mãos dela, meia dúzia de copos durariam muito.

 Coloco o copo na pia e tampo os ouvidos para não ouvir os latidos do cão; não quero ficar triste agora. Na coleira vermelha que a mulher segura, carrega também minha esperança de um amor que não pensa em fim. Eu me apego a duração, eles ao momento. Essa mulher castanha e seu cachorro arrastado...quanto amor que não sei se terei. Que sorte a deles em se terem, que sorte a minha em os ver.

Nada acaba. É só um rio, em que as águas sempre correm. Só passa. Aquele amor da calçada e a resposta que eu nunca sei dar. O amor continua na calçada, mais vulnerável, mas continua produzindo ecos e afastando os pedestres que ainda não puderam aceitá-lo .
   Me desculpe, vida. Me desculpe por fraquejar ou embrutecer demais, se eu não cortar as mãos, piso no caco de um vidro, quando tiver a coragem de me levantar. Da ferida  não escapamos nunca; ou será nas mãos ou nos pés, essa é a única escolha.





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