domingo, 29 de janeiro de 2017

Só se conhece alguém depois de andarmos no escuro

  Vinte, trinta, uma centena de anos de vidas aproximadas, quase sobrepostas; num emaranhado de difícil precisão, olhar para os dois pares de pés descansando na poltrona da frente e, por um segundo, nem ter certeza de quais são os seus. Uma vida inteira de descerramento de cortinas e atrás de cada uma delas um gesto, um gosto, uma cena improvável de quando você ainda não estava lá. Choro, trauma partilhado, abraço de redenção:
- Desculpa por eu não ter estado lá naquele dia em que você ainda nem existia para mim.
   Anos de confidências sem palavras, não precisar dizer nada e parecer sempre dito; não explicar muito e ser profundamente compreendida. Dividir a fruta, às vezes dá-la  inteira; beberem na mesma garrafa d'água e o último gole deixar no fundo e oferecer; levar um casaco a mais, uma fronha, uma escova de dentes nova, porque a memória do par é falha; acha que está sempre calor, que as hospedarias baratas têm fronhas limpas a qualquer dia e que viajar o desobriga instantaneamente das preocupações com a higiene.

  Ser a pessoa do outro lado da linha, quando atravessar parece solitário e demasiado duro, ser o rosto constante do sonho, o nome sussurrado no delírio febril. Ser alguém do outro lado da  mesa, em que colocamos a senha do banco, do computador, do telefone, onde, sem querer, expomos o segredo de alguém que nos pediu para guardar o segredo, mas carregá-lo sozinha começa a bloquear o ar; onde esquecemos, sem medo, os boletins de notas vermelhas, a carteira de identidade com a foto pavorosa, as dívidas, a bolsa aberta, os bilhetes escritos e recebidos. Ser a porta em frente a nossa, sempre escancarada, não ter que se esconder, camuflar, inventar histórias para dizer um "não". Poder aceitar e recusar com a mesma brandura. Ser, sem travas tecnológicas de segurança, escudos medievais ou vidros blindados. Deitar num colchão de serenidade sob o mesmo teto de vidro e ficar confortável no meio dos dois silêncios. É verdadeiro, é seguro, é mágico, mas não se conhece as camadas mais interiores de alguém, quando as braçadas são dadas somente em ondas tranquilas.
 
  Só se conhece o profundo de alguém depois de ter passado horas em mar aberto, de ondas agitadas, quando respirar é uma exercício de sobrevivência muito delicado, quando a água abafa o grito, as algas se enroscam nos pés, as águas comandam a direção do corpo e o sal do mar, que respinga no olho, faz chorar tanto que não conseguimos enxergar farol nenhum, quando as batidas do próprio coração parecem ser a única possibilidade de audição. Na luta para não sucumbir, não se enredar na confusão das ondas, o outro é um peso difícil de suportar. Deixar para trás e pensar na própria travessia parece a escolha última. Nadar juntos, sincronia de ritmos -  esperar o outro levantar o braço, para só então, elevarmos o nosso, sintonizar a inspiração do parceiro com a sua e exalar nos mesmos segundos que ele - é absolutamente possível em águas calmas, mas na tormenta inesperada é uma prova que nunca sabemos ao certo como nos olharemos na areia; caso os dois cheguem.

  Só se conhece a primeira tinta de uma pessoa, quando o desenho da superfície se esgota, quando o olho busca, sem investidas invasivas, ir além do que a tela estampa e a própria figura permite o mergulho irreversível - depois de ter ido e visto, nunca mais poderá emergir sem a visão. A aquarela suave tem uma confusão de pinceladas nas suas bordas, invisíveis, aos que visitam uma galeria sem o tempo, disposição ou interesse de descoberta.
 Só se conhece o topo da cabeça de uma pessoa, depois de ter visitado suas raízes, sem pudores, luvas ou desvios. Levantar cada parte, enxergar suas zonas, suas ramificações e só então, embrenhar nos galhos para a subida.

  Só sabemos quem é esse que nos espera do outro lado do rio, depois de afogarmos sucessivas vezes na corredeira, buscarmos o bote e ele não estar disponível, procuramos uma mão e ela não vir, gritarmos um nome e ninguém responder. Depois de afundarmos e subirmos, do fôlego falhar e, logo, nos socorrer, os olhos que nos olham de fora, são esses que nos acompanharão noutras descidas difíceis. Sairemos da água exaustos, assustados, com raiva da violência da natureza, com o medo, ainda recente, da proximidade da morte e esses olhos que nos examinam, são eles que sempre estiveram, mas nem sempre foram tão absolutamente aparentes. Não nos esqueçamos desses olhos.

  Só se conhece alguém depois de muitas esquinas dobradas, de endereços errados, de cartas nunca respondidas, de falhar incontáveis vezes em adivinhar o pensamento dela, de dividir a fruta em partes iguais, mesmo que a fome dela pareça mais urgente, de não deixarmos o último gole de água da nossa garrafa para ela, porque também temos sede. De não levarmos um casaco a mais, nem fronha ou escova de dente sobressalente.

   Só se conhece alguém depois de uma deslealdade cortante nossa ou dela, um abraço não ofertado ou recebido, quando já estávamos lá. Só conhecemos a urdidura mais fina de uma pessoa quando dizemos  aquilo que ela não desejaria ouvir, quando enxergarmos, numa hora, o que ela ainda precisava esconder e depois de ouvirmos sua confissão mais cuidadosamente velada. Os olhos depois de cada impossibilidade nossa, são os que sempre vamos ver depois de limparmos o vapor dos vidros.
   Só se conhece alguém depois de sentarmos na calçada, com a sandália arrebentada, sem dinheiro, sem perspectivas aparentes, com um gosto de vinho barato e um resto de cachorro quente nas mãos e de um desabafo ordinário:
- Ai como tô cansada.
  E ela ainda estar ali inteira.
  Esses olhos que olham de cima para nossa miséria; são eles os únicos e verdadeiros. Não esqueci desses olhos nem quando o vinho era o mais caro. Só se conhece o fundo mesmo de uma pessoa, quando depois de toda intranquilidade do mundo ainda encontramos, no escuro, tateando as paredes, o colchão de serenidade de quando as ondas não se rebelavam.





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