terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Para as próximas segundas que você não estará

  Para conseguir levantar da cama na manhã de segunda,  quando você não está, tenho que afastar o lençol por toda a amplitude do colchão sem me sentir sozinha, abrir a cortina devagar, evitar o alarme do despertador no volume máximo e não adiar muito a me erguer - se não, me atraso. Para levantar na segunda de janeiro, depois do final de semana que você não esteve, preciso só desligar o ventilador antes de sair de casa, colocar uma música que não me lembre você e não atender ao telefone fixo; as promoções de segunda são as mais demoradas e as vendedoras as mais simpáticas.
   Para sossegar meu coração, porque você não volta, tenho que esquecer as horas do trajeto, cumprimentar o máximo de pessoas a minha volta e descobrir nelas novas possibilidades: amizades futuras, aventuras adormecidas, amores menos complicados.

  Para desentristecer minha segunda, porque eu sei que duas vidas recomeçam agora, tenho que evitar as filas, recarregar a bateria do celular, escolher dois poemas ao acaso, respirar o cheiro do amaciante da minha camisa bem passada, me encher de coragem e pedir ao síndico o número de um chaveiro; a porta é só minha agora. Para romper com o medo de não encontrar mais nenhum vestígio seu, tenho que ligar o computador e não apagar nossas fotos, seus emails, meus trezentos textos escritos para você e apenas dois dedicados, salvos na pasta "respiro".
  Para sobreviver a uma segunda de verão sem férias e com uma nova terça a ser escrita, tenho que me concentrar no almoço, escolher as saladas e os molhos e não pensar na sua alergia à lactose e a frutos do mar - comi camarão hoje. Para evitar o constrangimento das lágrimas públicas, tenho que fingir que nada aconteceu; parentes, amigos, colegas de trabalho só vão saber que você não faz mais parte das minhas segundas, a partir da próxima segunda ou da outra; sem precisão, sem pressa.

  Para não soluçar de fraqueza e saudade, quando eu encontrar alguma prova material da sua desistência: a sua cópia da chave, o par de ingressos do show que você comprou e não vai mais e o Pessoa que você deixou marcado na página 72, tenho que respirar fundo e ligar para minha mãe. Perguntar alguma receita de bolo ou para tirar mancha de vinho, notícias sobre a avó e dizer que a amo. Ela vai saber que você não está mais e não vai me perguntar o motivo, porque hoje é ainda segunda e ela terá a semana inteira para sondar.
  Para não colocar o peso da sua ausência no primeiro dia da semana, preciso passar a agenda a limpo, marcar com o cabeleireiro e fazer um corte radical, nada de suavidade para janeiro e fevereiro; se não for outra, ao menos, pareço outra.
 
  Para não me entregar a toda sorte de boas lembranças na tarde de segunda, tenho que ser produtiva: terminar o trabalho, enviar o relatório, imprimir o cronograma,  recomeçar a  leitura, programar a faxina, tenho que remover suas manchas, as marcas do seu calçado do tapete da sala, jogar seu sabonete, loção pós barba e perfume no lixo. Tenho que ouvir outras músicas e listar sozinha os filmes em cartaz.  Para não perder a postura nem meu emprego já na segunda, tenho que ser simpática com o chefe, aceitar o convite da colega nova para um café e demonstrar motivação, mesmo que eu não quisesse vir nesta segunda. Tenho que planejar uma festa, um programa, uma conversa com as amigas que não vejo há algumas semanas e tentar não falar das segundas que você nunca mais vai estar.

  Para não chorar desesperada ao chegar em casa, depois de um dia de segunda aterrador, tenho que deixar a TV desligada, não me aborrecer com o noticiário que mente ou com a apresentadora que vocifera impropérios descarados em desfavor à vida. Para distrair meu espírito desse pesado desencontro, tenho que continuar Pessoa a partir da Página 72, que começa: "Disse Amiel que a paisagem é um estado de alma, mas a frase é uma felicidade frouxa de um sonhador débil". Tenho que me concentrar na paisagem e pensar que estado de alma tenho agora; se partida ou projeto de um longo recomeço. Para não me desesperançar do que acontece à minha porta, tenho que virar o rosto para o lado de lá das cenas desumanas de um cotidiano repetido, de leituras extremistas, de ideias limitantes, das invisibilidades brutais que invadem as praças, os prédios e ancoram o meus sonhos num fundo estranho e lamacento.

  Para não sentir o tédio da segunda que você me devolveu, tenho que cozinhar um peixe, lavar as folhas da alface e da chicória que ainda estão boas, tenho que beber o resto do vinho português que eu ganhei de ano novo e brindar ao prato cheio de peixe, folhas e queijo. Para não me sentir embriagada e sozinha na segunda que eu resolvi beber, tenho que me movimentar, não me entregar ao sofá ou a solidão. Preciso dançar um pouco, coloco Caetano em espanhol e tento não chorar com a Paloma triste. Se eu continuar de pé, tenho que lavar o único prato na pia, a única faca e garfo e não dizer:
- O único prato.
Nunca dizer, numa segunda triste, as palavras "um, só, único e segunda triste".

  Para não me abater e cair na cama com gravidade na segunda-feira, de jantar regado com meia taça de vinho tinto, tenho que não olhar para sua foto na mesa, não achar que você gostaria do pedaço de pudim na geladeira e que amanhã você acorda cedo para a sua aula de terças e quintas. Para estancar a corredeira que o meu coração prepara, tenho que me fortalecer nos planos de ginástica da academia que eu me matriculei há duas semanas e ainda não fui, separar as suas últimas roupas das minhas e gostar de ver o apartamento maior nesta segunda.

  Para me aquecer do vento ruim da meia noite e não me instalar numa insônia prolongada, tenho que ler mais trinta páginas, tomar um banho com algumas folhas de alecrim, enquanto o chá de maçã esfria na geladeira. Para ultrapassar a segunda-feira sem receio de uma outra segunda na terça, tenho que flutuar na prosa poética que você escolheu não terminar, tenho que aceitar a minha vulnerabilidade e chorar baixinho não pela segunda-feira partida, tampouco pela humanidade desencontrada ou pelas fechaduras trocadas, mas pelo desassossego do poeta maior que vai vir velar meu sonho esta noite. Para sossegar meu coração, menos retratos pendurados, mais sonhos paridos. Para sossegar meu coração não há meio, maneira ou escolha seguros. Para dormir uma noite inteira de segunda: coragem, vinho, banho, chá e poesia na beirada da cama. Acho que assim não há como os bons sonhos não me visitarem neste final de segunda. Amanhã já é terça, possivelmente a saudade aumentará, mas terei mais um dia de punho erguido. Se na segunda eu não desmoronar, já terei inventado uma outra semana.



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