quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Quando se tem um coração-pote de margarina

  Quando se tem um coração-alumínio, tal qual uma embalagem descartável da comida do domingo à noite,
que não precisa gastar com detergente, nem lavar e colocar para secar, tudo é passageiro. Nada se detém
por muito tempo, não ocupa, se incomoda é só jogá-lo fora, já.  Sabe bem que ama hoje, amanhã não ama mais. Vai para o lixo depois do consumo e logo vem outro novo. É econômico, é pós-moderno, prático é feito mesmo para facilitar a vida cotidiana. Sem embaraços, sem compromissos muito enraizados.
 Quando se tem um coração metade mulher, de mãos leves que tricotam, metade dragão, que cospe fogo é difícil adivinhar qual parte ganha numa disputa. Se a mulher está em casa é sempre mais compreensiva, menos grave, quase nada assustadora, mas se o dragão é quem acorda quando batem na porta, difícil vai ser sair sem ser queimado pelo fogo do sentimento dele. Mulher e dragão num mesmo espaço, dividindo as atenções e tomando café com as visitas. Os dois inseparáveis; dragão e mulher protegendo um ao outro, se conhecendo, cheios de afeto numa aliança de confidência e identificação, cuidando muito bem de um coração.

  Quando se tem um coração-porcelana, embalado em papel de seda; frágil, delicado, guardado no lugar mais alto da cristaleira; tem-se o medo constante de uma queda. Por isso ele é exibido só para as visitas ou ocasiões muito especiais, é um coração decorativo, livre de arranhões, mãos desajeitadas, a salvo das colheradas inquietas das crianças. Coração vaidoso, é mais para ver, quase nunca tocar.
  Quando se tem um coração em conserva, em solução de formol, em ambiente com temperatura controlada, é  um coração a serviço da humanidade, não da própria pessoa. Coração altruísta, pelo bem da ciência não da individualidade amorosa. É um amor maior pelo futuro do que por aquilo que pode ser vivido; é um coração que supõe um legado.

  Quando se tem um coração-armadilha, ele quer justiça ou vingança, por isso engana, mente, depois, ataca e prende, quando menos se espera. Um coração que não aceita perder a presa; que a quer de qualquer maneira, morta, viva, ferida. Uma engrenagem que pulsa para destruir.
  Quando se tem um coração-trem de pouso, pode ser que funcione ou não, se na hora pedida ele funcionar ninguém comemora, porque é só o que é esperado dele - abrandar uma aterrissagem - mas se não responder ao comando é inevitável a tragédia da queda. Todos mortos? Tem feridos? Ao todo, quantos milagres?

  Quando se tem um coração de ferro trancado à chave,  com as costas largas viradas para a parede. Nada pode invadir sua solidão, se já não tiver a senha. Guarda as memórias, as riquezas não esbanja, não ostenta, é amor para depois do trabalho, quando alguém entra, abre o cofre e admira o que é só dele.
  Quando se tem um coração-faca cega, que não acerta um só corte, que nem o hábil cozinheiro é capaz de manusear com sucesso, faz-se muitas tentativas até acertar um pequeno talho torto. A faca que não fere, não sangra, não descola, exige mais força das mãos do que habilidade. É um coração desvalido da sua função mais aguardada, serve só para ocupar espaço nas mãos.

  Quando se tem um coração-colo de vó, ele é sempre macio, doce, sem muita cobrança, acalenta o choro, faz curvas suaves com as costas das mãos no cabelo do neto e dá conselhos breves e bem intencionados. Coração antigo, amor de ternura e afeição de final de semana.
   Quando se tem um coração-novelo de lã, parece sempre embaraçado em outros tantos novelos. É difícil saber onde começa ou termina um fio seu.  Por isso, numa olhada superficial, não se antevê seu tamanho, pode ser curto e acabar logo ou longo, de ter que puxar suas extremidades uma tarde toda. Coração atado a muitas linhas e outras várias histórias.

  Quando se tem um coração-cobertor, é quente, protetor, essencial, mas só serve ao inverno. No verão precisa estar longe, dobrado no guarda-roupa a espera de uma frente fria. Coração de estação específica que no calor irrita, sufoca e ocupa espaços,  mas que no frio cinza é o melhor lugar para se estar.
  Quando se tem um coração de vísceras, é um coração forte e frágil, num mesmo tempo. É órgão que bombeia o líquido vermelho que nos move e que, também, faz a trilha sonora de cada emoção. Coração examinado, avaliado, dispensado ou estimulado a algum tipo de trabalho, aconselhado a alguma dieta específica, exercício ou repouso.  

  Quando se tem um coração- pote de margarina, que nasce para ser descartável, é barato, estampado e feio, mas antes do descarte aproveita-se um pouco para guardar o pedaço de bolo para o amigo levar; esse serve a tipos diferentes de amor, gente e histórias. Esse se entorta, descasca e resiste muito mais do que qualquer outro.
  Meu coração ordinário, engordurado da nata do leite, meu coração industrializado, fruto da economia de mercado, do capitalismo selvagem, da opressão do trabalhador. Meu coração-pote de margarina ao inteiro dispor para as serventias mais baratas, simples e comezinhas. Meu coração sem confusão, grandes planos ou muitas disputas, meu coração na esquina, nas mãos do mendigo, com uma moeda ou outra, meu coração copo para água do cachorro. Meu coração brinquedo de criança pequena,  carrinho, navio, berço dos pequenos sonhos, cofre das esperanças futuras. Meu coração, jogado no lixo, sacudido, empurrado, meu coração multiuso, reciclável. 
   Meu coração multiverso, múltiplo, amarrotado e chutado na rua por um bêbado. Meu coração amnésia, sem mágoa, cheio só de esquecimento, que volta a amar sem medo, todos os dias, meu coração-entrega, com resto de mortadela na geladeira de uma casa do bairro. Meu coração pote-de margarina, ninguém compra pelo pote, mas é o que por mais tempo fica.




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