domingo, 8 de janeiro de 2017

Tá com pena? Leva o coitadinho para a sua casa.

   Há três semanas o cenário é o mesmo, os detalhes eu fui descobrindo aos poucos  porque, no começo, era só um caminho de passagem, era só o lugar em que eu circulava o quarteirão, para voltar para casa. O prédio é novo, tem poucos apartamentos ocupados e no primeiro andar, só de lojas, nenhuma ainda foi aberta. Na porta de uma das lojas só uma manta lilás com dinossauros verdes, cuidadosamente dobrada,  um vidro de tinta para sapatos e um pedaço de flanela também dobrada. Na primeira vez que eu vi, achei que era só o lugar que alguém teria passado uma noite; comum, por aqui. Mas eu repetia o caminho e os pertences de alguém que eu nunca via, também se repetiam no pequeno quadrado da calçada. Só sabia que eram usados, porque mudavam de lugar - o que ficava no meio passava a ser extremidade e o que era extremidade, vinha para o meio - e as dobras eu reconhecia que também mudavam, eram maiores, menores, a outra parte da manta para fora - uma vastidão verde com dinossauros lilases.
- Dormiu aqui de novo.
  E eu que saía, ainda de madrugada, de casa e deixava a cama desfeita, porque voltava em uma hora, depois do terceiro dia de cenário repetido, passei a dobrar o lençol e a estender uma colcha na cama, com a mesmo zelo, cuidado para ir para o dia.

   Aos poucos alguns objetos foram aparecendo perto da manta, do vidro de tinta para sapatos e da flanela. Primeiro foi uma garrafa térmica vermelha com o cabo quebrado, depois uma almofada de coração com a frase "te mo", sem o "a", assim mesmo, vago, um bordado perdido e o coração que amava, passa a ter medo. Eu passo todos os dias antes das sete da manhã e só encontro vestígios de alguém que eu nunca vi, mas conheço um pouco pelo que ela deixa depois do sono.

  Alguém dorme há quase um mês na calçada por onde passo, pela manhã, distraída, algumas vezes, noutros dias numa espera angustiada, noutros, cantarolando a música que vou ouvindo e, mais ultimamente, esperançosa em encontrar o dono dos pertences tão íntimos, expostos no prédio novo, com um jardim que logo terminarão, na porta de lojas que num dia desses começam a funcionar. Quanto tempo ele passa na sua manta de dinossauros? Que idade tem? É um homem ou uma mulher? O vidro de tinta sempre me faz pensar que é um homem jovem, porque os engraxates da cidade são, em sua maioria, meninos. Mas a manta com motivos infantis, o coração sempre em pé, demarcando seu lugar, decorando com delicadeza um espaço  que ainda não foi reivindicado pelos proprietários, acaba me parecendo doméstico, amoroso e, talvez, um pouco feminino.

  Quem dorme há quase um mês sob a noite de estrelas da cidade, no calor de dezembro e janeiro e que dobra sua manta todos os dias depois de se levantar? Quem não vê meus pés, desesperados, porque acorda antes de mim? Quem é o dono da garrafa vermelha, do coração, da manta, do vidro de tinta e da flanela? E por que, se é engraxate,  não leva seus objetos de trabalho, quando se levanta? Ou no vidro não tem tinta e a flanela não lustra? Será sua distração para vida? Um anestésico para aliviar o medo, a dor e chegar ao sono? Com o que sonha? Será que abraça o coração enquanto dorme? Subo a rua e faço perguntas.

  Hoje, porque é domingo, acordei mais tarde. Tomei café e comi três torradas com o gosto de abacaxi, porque guardei-as num pote, onde há alguns dias tinha a fruta picada. Eu sempre me esqueço de colocar de molho com água sanitária e água quente. Então acabo comendo qualquer coisa com gosto de abacaxi, depois do esquecimento. É isso: uma coisa, ocupando o lugar de outra que ainda não se despediu, acaba por ser nova, com o gosto da antiga. O sol não era tão forte ainda, antes das nove, então fui andar pela mesma avenida. No verão, especialmente aos domingos, a avenida inteira tem o cheiro adocicado de abacaxi, pelo caminho três barracas, vendendo só abacaxi. Se eu não gostasse da fruta, teria ânsia, de tanto gosto e cheiro impregnado, mas não é o caso.

  Respirava fundo todo o cheiro doce e tentava decorar a música que tocava.
- Adoro essa música. Nunca vou saber ela completa, mas, também, para quem e onde eu cantaria?
  Quando fui virar o quarteirão, olhei para porta da loja e porque é domingo, a manta não estava dobrada ainda, mas esticada e embaixo dela uma pessoa, aquela a quem eu queria encontrar. A cabeça coberta, nem um pedaço de pele para fora, talvez nem fosse ainda dessa vez que eu a conheceria. Era uma montanha de dinossauros coloridos, a garrafa, o vidro e a flanela, do lado da cabeceira inventada e o coração em cima da montanha. Chego mais perto, daqui a pouco passo e não descubro quem é. A montanha de repente vira, se abre, um homem em posição fetal, deitado de frente para porta de ferro de uma futura loja, se descobre, estica o corpo lentamente, se vira e me olha. Não olha para os meus pés, que estavam na altura dos seus olhos, mas olha para mim e os olhos dele são castanhos, cor de calma. Penetraram em mim, sutilmente, sem invadirem. E eu vi tantas vidas nos dois olhos pequenos dele, vi gerações, ascendências, lutas seculares, quedas, resistências, dores e um coração agarrado aos pés dele.  

  Levei um susto. Minha pulsação aumentou, meu relógio vibrou, do mesmo jeito quando eu corro; só que eu completamente parada. Debaixo da noite, um homem jovem dorme, cabelos raspados, olhos doces marrons, em posição fetal. Se ele parecesse uma ameaça, de repente; se não o quisessem mais ali; se os donos das lojas ou dos apartamentos o expulsassem na minha frente e eu só quisesse abraçá-lo, uma voz brutal gritaria:
- Tá com pena? Leva o coitadinho para sua casa!

  E eu teria vergonha, não do grito.

  Debaixo da noite dorme um homem, que hoje eu vi e me viu. Como são seus suspiros, como era sua vida pregressa, qual será sua possibilidade futura? Faz orações enquanto estende sua manta de dinossauros, acredita em algo, esse homem? E se acredita, tem raiva ou esperança? Quem ele era antes de se abrigar no céu estrelado? Quanto tempo poderá ficar aqui? Quem vai tirar o seu lugar? Já se acostumou a ter e não ter mais? A estar e não estar mais? A ser e não ser mais? Qual a inconstância dele eu deveria aprender? Não tomar, mas repartir. Passo pelos olhos dele, olho para a manta e antes de subir a rua, vejo o coração.

  Não sei se alguém chamou a atenção dele para sua almofada de coração medrosa, mas hoje, enquanto eu passava, depois de ver os olhos dele, a almofada tinha um "a" recuperado com giz. Debaixo da noite, um coração que ontem temia, hoje é amor. É essa a inconstância dele que eu quero ter. Todas as noites, durante a semana inteira, eu quis que chovesse para refrescar meu sono. Agora, são quase sete da noite, eu olho para céu e torço para as nuvens irem embora.

  Eu nunca mais vou querer chuva, frio, insegurança, fome e nem gritos, nesta cidade, enquanto o homem do cobertor infantil, garrafa vermelha, vidro de tinta, flanela, coração amando de novo  e olhos derretidos de vida, estiver na rua. O abacaxi eu espero que continue alastrando seu cheiro bom.

- Tá com pena? Leva o coitadinho para a sua casa.
Eu trouxe, há três semanas, antes mesmo de ver seus olhos, ele já vinha comigo. Não precisa gritar, eu sempre trago. E com ele, mais esse desafio: recuperar o "a" e transformar o verbo e a ação.



2 comentários:

Carla Machado disse...

Eu temo, tu temes, eles temem... por que não Temer? Lindo texto. Vou levar ele comigo!

Amanda Machado disse...

Eu amo, tu amas, eles amam...por que não amar? Gracias siempre! Leve sim. ;)