sexta-feira, 3 de março de 2017

Salvava das quedas, evitava os mosquitos e afastava os suspiros

  Às vezes custa-se muito a identificar o que é, de onde vem ou como fazer parar. Estar em frente a uma prova, cuja matéria não estudou, mas também não querer deixá-la em branco; de onde virá a resposta, senão dela mesma? Então busca-se nas próprias perguntas algum vestígio de resposta. Examinar opções, ler cada uma das alternativas  e buscar eliminar uma a uma, até que, ao final, a resposta brilhe, depois das demais opções estarem definitivamente afastadas. É um risco, como qualquer escolha tomada num caminho.
  Um professor experiente pode identificar o aluno descomprometido com a sua disciplina, mas persistente, se elaborar alternativas cujas diferenças sejam sutis, muito tênues. No entanto, essa estratégia também poderá prejudicar o aluno que estudou, mas que talvez não tenha uma sensibilidade tão aguçada para perceber nuances. São inconvenientes que quem pergunta e quem responde terá de aprender a enfrentar.

  Mesmo o aluno que estudou, frequentou as aulas, anotou, chegou minutos mais cedo em sala no dia da prova, colocou o lápis e a borracha em cima da mesa e o restante do material debaixo da carteira, ele não se arriscará a marcar a primeira alternativa que lhe parecer certa, ele visitará todas as outras até ter certeza que aquela já lida e suspeitada é a única. Provar que sabe, que estudou, que a memória é boa ou que é insistente e perspicaz? Paciente, talvez? Na decisão de não devolver uma folha em branco sem nenhuma tentativa, arrisca-se a errar absolutamente todas as questões, qual perda é a maior? A da prova completamente em branco ou repleta de erros?  

  Tira o sapato, afasta a costura da meia, troca o band-aid; não é.  Abre um botão da calça, afrouxa o cós, afofa a camisa; mas ainda não. Abre a janela, desliga o ventilador, afasta as cortinas e, também não.  Abaixa o som, mais um pouco, um pouco mais, então desliga; não também. Tem fome, não, mentira, não tem nada, toma água, quase se afoga num copo, não parece sede. Não vai atender ao telefone, responder mensagens nem abrir suas redes sociais ou responder quem chamar; não parece bom. Se sente só, como sente. Vai procurar companhia, iniciar conversas com quase desconhecidos, oferecer chocolate, sorrir no elevador; parece forçado, não é também. Acende uma vela, incensos, toma banho de ervas, ouve cânticos, entoa mantras; mas também não parece curar. Opções lidas, testadas e descartadas, quantas mais ainda faltam?

 Ela sempre chega à varanda com o seu bebê. De manhã, parece que tomam sol; ao final da tarde, se refrescam no vento, algumas vezes ela parece olhar o céu, enquanto o filho suga o seio, olha um pássaro, chama o gato e tenta mostrá-lo ao filho, que ainda não esboça nenhuma reação mais pessoal com este mundo, confere o disparo de um alarme insistente do carro na rua; ela nem tem carro, mas sempre vem ver. A varanda, acho, tem sido sua  conexão mais constante com o mundo que ela conheceu antes do bebê ser seu único habitante e ela ser promovida a planeta.
  Bebê e mulher quase sempre juntos, ele dorme, ela contempla a rua, ele se alimenta, ela investiga alguma janela, ele chora, ela está com ele na varanda, mas também não está lá. De início, achava bonito, vê-los sempre na varanda. Às vezes, eu era a mãe, me chamavam, eu respondia, me requisitavam, eu estava disponível, mas não deixava os dois sozinhos na varanda, eu também estava lá e chamava o gato.

  Mas, agora quando os vejo, acho mais e mais melancólicas as cenas. A mulher olha cada vez menos para seu bebê e fixa os olhos num horizonte  mais longínquo a cada hora. Nem os alarmes dos carros chamam mais sua atenção. Ela parece cada dia mais cansada, com menos energia e chega molhar a cabeça do filho com suas lágrimas, mas depois alisa a cabeça dele, secando sua emoção ou cansaço e talvez peça desculpas pelo incidente de não conseguir sorrir nas últimas semanas, porque ela abaixa a cabeça, levanta o bebê e beija sua testa com uma ternura demorada.
- Ele a perdoará.
Eu sussurro da minha janela.
  Quanto mais passam os dias, menos visitas ela recebe, mais desamparadas são as suas aparições na varanda. O lugar mesmo, parecia mais cheio de vida. Algumas plantas secaram na parede, outras, que ficavam no chão, eu imagino que ela se desfez, para quando o bebê começar a engatinhar e as almofadas de chita estampada, têm agora tons pastéis - devem combinar com o enxoval do seu filhinho. Tudo isso, eu vejo atrás de duas telas, numa daquelas de segurança, instaladas para a proteção das crianças e uma tela com fios mais finos e entrelaçados, para proteger o apartamento da visita de pernilongos e mosquitos.

  Duas camadas de proteção, e a mulher com seu rebento parecem condenados a uma segurança que os mantém noutra experiência no mundo, numa em que a mãe não estava adaptada a gostar ou viver. Dia desses, ela apareceu sozinha, parecia com mais energia, mais cor, mas estava demasiada inquieta. Olhava para os lados, para o céu e horizonte, mas não demorava os olhos em parte alguma. Tinha olheiras mais marcadas, cabelos despenteados e a mesma roupa do dia anterior. Fiquei preocupada, talvez precisasse de ajuda. Olhei mais, ela saiu da varanda, mas eu continuei. Não demorou muito e ela voltou com uma tesoura nas mãos e um rosto transtornado, atacou as duas telas da varanda. Cortava obstinada, com raiva e desesperada, às vezes,  as emoções pareciam tão intensas que se atrapalhava: cortou o cadarço da própria calça, acertou uma toalha, que secava num varal, desses dobráveis de apoiar no chão e deixou a tesoura cega, porque depois de insistir nos últimos cortes e não ter resultado, ela começou a arrancar somente com a força das mãos as telas pregadas nas paredes da varanda. Fez um buraco grande, irregular, o desenho de um desespero. Temi pelo que aconteceria a partir dali. Peguei o telefone, mas não sabia a quem recorrer. E mais uma vez ela voltou, agora com o bebê. Comecei a chorar, da janela, de uma rua que ela nem deve conseguir enxergar, gritei, supliquei por ela, pelo filho.
- Por favor, não! Vai passar o cansaço, a solidão, vai passar a aflição de uma outra vida. Vai!Vai se acostumar, vai amar, vai se orgulhar de aprender, de resistir. Não.

  Ela não podia me ouvir e se pudesse, não parecia que ouviria. Com o filho no colo, colocou a cabeça no maior buraco da tela, completamente destruída, e puxou o filho para perto de si. Olhou para o céu. Olhou sem as duas telas. E mostrou para o filho. Vi, ainda seu peito se encher de ar e ela esvaziá-lo, enquanto fechava os olhos; parece que fabricou um suspiro com o bebê no colo. Agarrada ao filho, sentou-se numa espreguiçadeira da varanda e ficaram os dois lá até eu ir tomar banho, jantar e dormir. Olhavam para o céu a mãe e o seu filhinho, ela não molhava a cabeça dele com lágrimas, só ria e suspirava.
  Eu fui para a prova sem estudar e não achei a resposta certa; me enganei com a primeira. A mãe também foi e depois de algumas tentativas, finalmente marcou a letra que se encaixava na pergunta. Se não fossem as telas, os filtros, as redes e tudo mais que nos protege, mas também isola, veríamos o céu com mais frequência e talvez suspirássemos mais. Não tem problema errar, cegar a tesoura ou fazer um corte feio, desde que se veja o mesmo céu de sempre. Mas se entregar a prova em branco, talvez nunca mais volte a ver o azul sem os recortes da trama.




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