sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Uma boca vermelha e um café coado na hora

  Dava um beijo em cada filho antes de se deitar, o amor era assim naquele tempo, só depois das obrigações de casa, da dela e a da família que dava o sustento da sua. Eram quatro os filhos, três camas a visitar, os dois mais novos dividiam uma das camas de solteiro, nem era difícil arrumar uma cama, no prédio em que trabalhava tinha sempre alguma para doar. Como trocavam de móveis aquelas mulheres! Mas acontece que no quarto já não cabia mais nenhuma. E assim, também, as crianças se esquentavam mais fácil no inverno.

  Perdeu dois irmãos de pneumonia quando morava na roça. Menos uma preocupação.

  Beijava as quatro bochechas e fazia um sinal da cruz em cada testa. Toda noite era o mesmo ritual, o cansaço, o trabalho até tarde, o frio demasiado ou o calor insuportável, as preocupações, as contas que venciam e o dinheiro que sempre era a conta, nada era mais importante que o beijo em cada filho. O beijo dava sentido à maternidade, era o selo de todos os dias que cada um recebia da genitora, mesmo que nem vissem.

  Os meninos iam à igreja, ela achava importante, ela ia quando podia, quando a roupa e o cabelo estavam ajeitados no domingo e se não tivesse passado a noite, fazendo doces, para alguma encomenda  no dia seguinte, senão ficava em casa, mas eles iam. Porque escola e igreja ajudava na educação, ela não sabia em que medida cada uma contribuía, nem em exatamente em quê, mas era assim que ia ser. E até quando cada um escolheu uma religião diferente, ela não achou ruim, que se encontrassem em qualquer crença, só não queria que não tivessem nenhuma. Quando faltasse a mão entre os homens - porque ela se ausentava com frequência nos dias mais difíceis - eles tinham um amparo para recorrer; era assim com ela. Desemprego, salário atrasado, menino doente, medo, chuva forte e encosta ameaçando, febre alta, notificação do conselho tutelar, na crença é que ela se resguardava, ao menos isso daria aos filhos; alguma esperança.

  Ela trabalhava, mandava os filhos para a escola e suas crenças, fazia doces à noite, quando chegava em casa e dava o beijo, antes de se deitar. Os filhos cresciam e quando a casa ficava apertada demais, dava um jeito de abrir uma parede, subir mais um cômodo e se ajeitavam, a casa crescia com os filhos. E o beijo, às vezes, não encontrava um ou dois deles na cama.
- Coisa de juventude essa folia em fogo.

  Logo foi encontrando menos bochechas e testas, até que numa noite uma testa e bochecha se ausentou definitivamente. O filho mais novo não voltou para casa e ela só se levantava mesmo toda manhã, ela achava, porque teve na crença a mão que ninguém podia ofertar. Era grata pelos três beijos que encontravam os rostos, mas doía aquele um só que era jogado no ar. Doeu para sempre.
  Depois, cada um encontrou um caminho próprio a seu tempo. A casa crescia, as camas se distanciavam, o amor da noite era cada vez mais rápido, em beijo e cruz na testa. Até que a noite passou a ser inteira dela. E nesse mesmo tempo também já não trabalhava mais na casa de ninguém,  só fazia os doces e cuidava da horta que ela e o último filho, a ir embora, tinham começado.

  Não se acostumava nunca ao tempo que era dela, sentia-se entediada, inútil, ajudava uma vizinha, trazia um neto para cuidar em casa, mas o tempo inteiramente preenchido não tinha mais.
  Hoje, não teve neto, filho nenhum pediu ajuda, nenhuma colega para acompanhar ao médico, terminou o serviço da casa e foi para a janela buscar alguma coisa para o olho se distrair. A vizinha cumprimentou, teve pena da velha mulher sozinha e se ofereceu para tomar um café:

- Tem café aí?
- Ô se tem! É o que mais tem na casa de pobre. Chega aqui, passei um há pouco.
- A horta tá bonita, hein? Café forte e doce, do jeito que eu gosto! E a senhora, melhorou da diabetes, esse café não tá muito doce pra senhora?
- Ah minha filha, se nem com doce a gente puder, vai ter que alegria na vida?
- Mas a senhora tá bem?
- De saúde, até que tô. Mas tem dia que a lembrança arrebenta, diacho de tempo parado! E as menina suas?
 -  Tão bem, a mais nova foi morar com o namorado. Tá me fazendo uma falta, a danada!
 - Assim mesmo, filho é passarim, a gente cuida até onde pode, um dia eles voa. Ih...voa! E aí fica uma casa vazia, dá umas volta no peito esquisita. Tem dia que tô boa, boa. Mas noutros é uma doeção danada, uns pensamento triste que vem na cabeça da gente. Queria ter acarinhado mais meus menino. Mas naquele tempo a gente não sabia, ninguém ensina, era tudo corrido. Hoje, não. Hoje eu tinha mais tempo de fazer as vontade tudo, pegar no colo, abraçar bem apertado e beijar mais. É bom passar o amor para eles, né?

  Terminaram o café, voltaram para a frente da casa, quando a filha da vizinha passava,trazendo o filho da creche, um  menino de uns três anos, ela cumprimentou, elogiou o neto para a avó e o filho para a mãe e pediu para segurar no colo um pouquinho.
- Vem com a vó. Vem! Aproveita desse menino, viu?
Aconselhou
- Aproveita. Que o tempo passa tão depressa, passa bastante a mão no cabelo. Cabelo do filho da gente é a macieza mais fofa. Nada é igual, não importa nem a qualidade do cabelo, se fino, se grosso, se liso, se enrolado. Tudo na mão da mãe é bênção.
- Desculpa, viu? É velhice. Acordei meia amuada hoje.

- Mas de verdade, quer saber da coisa mais engraçada e torta nessa vida? Que tarde a gente aprende a amar! Divia de sê o contrário,  pequena já divia de saber amar bem, a gente nova amava muito e depois, pegava desgosto com a vida, que aí nem era difícil de partir, sabe? Cada um que fosse, não fazia falta assim tão imensa. Mas a gente vai amando mais, querendo mais, reparando no jeito e nos sentimento, quanto mais a vida vai ficando curta. Errado. Não acha não? Desacerto de tempo. Correria besta. Fui alargando a casa, trabalhei que nem doida, nem vi esses menino crescer direito, nem passei uma semana em casa quando mataram o mais novo.

  Engoliu um nó. Ficou com olho parado para a porta de um quarto que não guardava mais ninguém. Pediu desculpas para as duas vizinhas e passou a mão no cabelo do menino mais uma vez. Calada, bem muda.

  Quando as duas foram embora, ela ligou a televisão e a atriz da novela, a mocinha que ela achava uma sonsa que nunca sabia de nada, tinha uma boca vermelha, redonda, bem desenhada. Lembrou que nunca tinha comprado um batom para ela. De vez em quando ganhava alguma maquiagem usada das casas em que trabalhava, mas dava para a filha mais velha, tudo, todas. Achou bonita a boca vermelha na TV.
  Sentia falta de um batom, agora tinha dinheiro suficiente para um batom. Deitada na cama, mulher pequena, corpo franzino, bem judiado e sonhava com os quatros beijos que recebia na cama.
- Amanhã vou no centro comprar um batom.
Que consolo suspirado antes do sono!

  A gente alarga, ganha espaço para, depois, a tardezinha, quando passar o café, não encontrar ninguém mais em casa. Todos já foram embora. Deu os beijos que pode, fez a cruz na testa, antes de cada um seguir seu rumo. Só agora soube que nem era a mão de uma divindade ou a crença no céu que a seguravam em pé, mas aquele beijo nas bochechas dos quatro filhos, o amor que só aparecia de noite é que sustentava a estranheza dessa vida. Descobriu, antes do sono, que sempre foi amor.

  A saudade é uma boca vermelha, com um gosto de café, uma mulher amparada na janela, sonhando com um beijo de boa noite. O amor acanhado também é amor, um beijo, uma vez por dia, é ensinamento mais duradouro que a escola ou a igreja pudessem dar.





2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, por volta de 13 de fevereiro de 2017

Prezada moça das raízes culturais deste mundo dicotômico

Que bom que escreve, e escreve coisas que fluem como Nina Simone cantando, fluindo, deslizando por sobre o que há de nobre no sentimento humano. Aqui, o amor de mãe. As amizades. Que bom.

Teses assim, destas que cobrem nossas vidas não flertam com os amores líquidos de Bauman, que é outra coisa do mesmo mundo, só que cada vez mais coisado nas nossas cada vez menores dimensões de vida.

Eu e minhas ociosas teorias. Antes delas, vou ousar um delírio filosofico de boteco, destes com copo sujo e humor exacerbado - Bauman, eu penso na minha insignificância, traduziu para a era cibernética o Wittgenstein, que revolucionou o pensamento moderno com o entrelaçamento entre pensamento, linguagem e mundo, que segundo ele isso não poderia ser demonstrado, pois seria algo que apenas se mostra, e Bauman (eu acho-viva o achismo filosofico) mostrou que sim, nós podemos ver isto tudo junto e misturado neste território, este novo mundo chamado Internet.

Quando eu pensei nisto? Aqui: " A gente alarga, ganha espaço para, depois, a tardezinha, quando passar o café, não encontrar ninguém mais em casa. Todos já foram embora." (pensamento, linguagem e mundo)

Como o delírio de hoje está em alta na minha euforia, minhas teorias quase citadas estão adiadas, papo com café para outro dia. E claro, reli, quase apaguei-deletei, mas resolvi deixar no original sem cortes e sem censura.

Cartas são o que são.

Saudações

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 14 de fevereiro de 2017

Estimado e imprescindível Paulo,
é sempre bom quando vem, para uma xícara de café que seja. Imprescindível também é Bauman e as suas investigações tão inquietantes sobre a liquidez deste mundo. Talvez aqui seja um lugar que pretende resistir, nadar sim nessa corrente fluída, mas não afogar-se nela; há tanto de imperecível, ainda, mesmo nestes tempos líquidos (eu suspeito) e falava sobre isso no texto que escrevia (no seguinte), enquanto você chegava e se sentava à mesa. Engraçado, não?

Quanto ao Ludwing Wittgenstein, não o conhecia, mas já gostei! ("Destruir a escada depois de subir"...me deixou pensando e é o que a filosofia faz, não é?).
Sim, linguagem, pensamento e mundo parecem se encaixar completamente no trecho que você escolheu!!!

Enfim, a conversa é sempre das melhores. Volte sim, com as teorias adiadas e com outras e outras e não edite, por favor! Cartas são cartas, cafés e conversas são só cafés e conversas, não merecem a mão fria da censura.

Abraços e obrigada por segurar a escada.