segunda-feira, 12 de junho de 2017

Um livro dura muito pouco nas mãos

   Quanto melhor a leitura, menos tempo um mesmo livro permanece sobre a cabeceira. Um livro é feito para durar noutra dimensão; fisicamente é só um amontoado de símbolos impressos. Eu ainda sonho com o primeiro livro que li, tinha cavalos nele, muitos, nunca me esqueci, embora não saiba o autor nem tenha, nunca mais, tocado sua capa. Eu sonho, porque ele mora em mim e vem me visitar enquanto durmo. Um livro de cavalos, também, faz de mim o que eu sou.
  Embora eu saiba que o final de uma leitura não deva ser triste, tenho dificuldades de começar outro livro no mesmo instante, preciso deixar que o lido se assente no fundo, como um pó, misturado na água depois de remexido. As páginas giram em mim, se misturam com outras de outros tempos, fazem conexões, se expandem e iluminam os meus olhos.  Noutras vezes, entram em confronto, lutam por maiores espaços,  massacram ideias, submetem frases e contorcem os meus músculos, fico encolhida na cama, esperando o fim da batalha.

  Depois que um livro acaba, simulo uma travessia, invento que as coisas serão outras a partir de hoje, mesmo que eu durma do mesmo lado da cama sempre e amanhã acorde dois minutos antes de tocar o alarme com uma música de uma cena triste de um filme antigo. Sou uma imensa biblioteca desorganizada, chegam livros novos, empurro os antigos para trás nas prateleiras e juro que volto para colocá-los em ordem um dia. Nunca volto. Não me desfaço de nada e também não abdico de nenhum novo título. Olho de longe, às vezes, às seis da tarde, quando ninguém mais entra na biblioteca e me orgulho da estética do lugar como um todo: as  linhas descontinuadas de tamanho e do colorido da lombada dos livros. A poeira não incomoda, faz parte não ter o controle de tudo. Eu não abriria meus pulmões para respirar um ar isolado desse tempo depositado. Quanto mais empoeirado, mais distante das mãos.

  Por isso me comovo com quem chega para pegar algum livro e não busca um lançamento. Seguem para as prateleiras mais altas ou  para as mais baixas, resgatam algum livro sufocado num canto e vão viver com ele. Eu quase choro quando busco a ficha e percebo que o livro esteve intocado na prateleira há quatro, cinco anos. Eu nem disse que ele estava lá e outras mãos o encontraram. Vou até a porta com passos emocionados, no batente, choro as lágrimas de uma mãe a se despedir do filho numa estação, e baixinho desejo uma feliz viagem. É como num casamento, não sei que sorte os noivos terão, mas os desejos de felicidades são os mais sinceros da alma.

  Então, hoje,  quando  alguém me pergunta se já foi superado aquele que foi lido. Eu sei que foi e que também não foi.
- Já o esqueceu?
- Nunca, jamais. Mas também não me lembro dele.
  Empurrei o livro velho para trás de alguma prateleira e não sei onde ele está, quase não o vejo, mas a minha biblioteca não teria o tamanho que tem se não fosse aquele livro velho.

  Quando fotografou um retrato antigo do álbum da minha família, enquanto eu não olhava e depois me mostrou. Eu sabia que era ele o leitor que eu esperava. Vestido verde água, sorriso vermelho e uma garrafa de guaraná em cima da mesa.
- Sabe que neste dia eu fui muito feliz?
- Imaginei que sim, porque eu já vi esse sorriso outras vezes.
-  Sabe então que sou feliz muitas vezes?
- Não contei quantas, mas de todas eu quero me lembrar para sempre.

  Tirou um dos meus livros da prateleira mais escondida, aquela no alto, quase pregada ao teto, soprou o pó da sua lombada, passou algumas páginas com cuidado e saímos juntos da biblioteca. Teríamos duas semanas de compromisso e a moça que chancelou o empréstimo desejou-nos felicidade. Ele não ouviu, mas eu sim. Ele leu cada uma das páginas, anotou referências, sonhou com algumas frases, compartilhou algumas e guardou outras para si. Foi o leitor que podia ser, gentil muitas vezes, impiedoso noutras. O meu livro também deu a ele o que podia; noites de tormenta e dias luminosos.

  Eu detestava quando ele passava dois ou três dias sem voltar à leitura, como se eu não estivesse lá, se não queria ler, que me levasse de volta à biblioteca! Eu detestava os dias que ele não fazia outra coisa senão me ler; me sentia exaurida, cansada de ser livro, submetida a sua curiosidade insana. Mas eu amava estar na sua cama, cabeceira e, principalmente, cabeça durante o tempo em que ele não me lia, sabia que o modificava e me sentia mudada também. Eu amava quando via seus pelos eriçarem quando se sentia especialmente tocado por alguma parte que lia e eu, fatalmente, me entregava mais e ficava vulnerável, entregue ao meu leitor, quase cativa.
  Ao fim, voltou para devolver-me, fomos muito felizes na leitura. Mas é bom também voltar aos companheiros de jornada e esperar um próximo empréstimo. Não me esquecerei dele, mas lembrar também não vou. Não caibo num livro só, volto sempre à biblioteca. Mas ainda lembro da foto que ele tirou e imagino se ele ainda se lembra da minha felicidade. Esquecer não vai, mas lembrar um dia ficará longe e eu serei o livro de cavalos a visitá-lo num sonho.




4 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 22 de junho de 2017

Prezada Amanda
Cândida das letras e das palavras alvinitentes.

Um texto que não precisa ser comentado, é por si só instrumento de paz e alegria.

O tempo corre, suas publicações pululam em qualidade e quantidade e estou tentando acompanhar, mas seu ritmo da juventude aliado ao seu estilo literário envolvente exigem paciência para com este leitor.

Um abraço
Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 22 de junho de 2017 (começo de um inverno esperado)

Caro Paulo,
enquanto você escrevia aqui eu estava ao pé da Pitangueira, engraçado, não? Espaços distantes e tão aproximados...

Que bom que gostou do texto. Venha assim, sem pressa alguma, quando puder e quiser.
Abraços
Amanda

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, tarde noite de São João,

Amanda,

Fiz uma releitura da crônica. As imagens ainda estão se organizando feito "Livro de Cabeceira" de Peter Greenaway. Muito interessante, a leitura ficou reta, as palavras se justificaram, a ordem ficou alinhada. Um show, hwm - não havia percebido nitidamente com clareza no primeiro instante, mas de repente a luz - uau!

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, quase noite de São João? (Não tinha me atentado a isto...por isso tão frio!), de 2017

Imagina onde eu estava agora? Ao pé da Pitangueira de novo...já é quase rotina, eu lá e você aqui.
Que bom que voltou ao texto, Paulo. Eu quase nunca volto às coisas vistas, por isso perco tanto, faço essa reflexão sempre, mas não mudo o hábito...infelizmente. Não assisti ao filme, mas já gostei do trailer. Então assistirei!

Abraços, uma ótima noite de São João
Amanda