segunda-feira, 31 de julho de 2017

Uma granada atrás da outra

  Quando o cigarro caiu no chão, quase inteiro ainda, é que eu percebi que as mãos dele tremiam muito. Tirei os olhos das mãos e fiquei olhando o cigarro apagar no cimento. Não queria que ele percebesse que eu vi suas mãos trêmulas. Mas o cigarro no chão apagou muito rápido, ninguém mais chegou, nenhum relâmpago, pássaro ou carro que tirasse os meus olhos da dificuldade dele. Não sei quanto tempo durou entre o meu disfarce respeitoso e a intimidade das minhas mãos no bolso da camisa dele, retirando um maço, um isqueiro e acendendo um cigarro que eu nunca fumei. Eu não consigo me lembrar da sequência, tampouco o conteúdo da minha oferta, não sei quando eu desisti de desviar e assumi a presença angustiada do fumante desconhecido. Eu que nunca gostei do cheiro de cigarros, acendi, em menos de uma hora, dois deles e respirei como se os meus pulmões tivessem completa familiaridade com a fumaça. Eu não pude partir sem o ver, eu não quis deixar de vê-lo. Fumante passiva - é esse o nome, me lembrei enquanto respirava o cigarro em que eu depositei a chama.

  Não estranhei o cheiro, não tossi, meu organismo não rejeitou a substância com violência, mas também não tive nenhuma memória despertada, porque nunca convivi com fumantes. Era novo e era antigo. Era um ar raro, mas que eu me acostumei antes mesmo da primeira tragada do homem de mãos trepidantes. Depois do primeiro cigarro aceso, fiquei sentada com o maço e o isqueiro nas mãos. Eu não tentei devolvê-los, ele não me pediu. Eu era um soldado com arma e postura prontas para qualquer novo comando da patente mais alta. Falamos pouco. Eu, pelo meu ancestral conforto no silêncio e  ele, pela precisão que o gesto requisitava. Ele tinha uma granada nas mãos, a primeira caiu, mas não fez nenhum grande estrago, só a perda do artefato, nessa segunda ele não queria errar; tinha um soldado esquadrinhando cada gesto seu. Ele era o mestre que tentava o impossível de não falhar.

  Ele não era um fumante comum, alguém acostumado não olharia para o cigarro como ele olhava. Essa é a maior tristeza dos hábitos, olhar para uma coisa e não poder vê-la pela primeira vez; como alguém que mora em frente ao mar e se acostuma. Como pode não saber do medo e do deslumbramento de ver o mar pela primeira vez? Um amor acostumado esquece como ama. Tem certeza do amor e pronto, como se já tivesse nascido com o sentimento e com a pessoa.
  Eu minto, simulo para mim, repetidas vezes, a ignorância completa de uma dezena de coisas cotidianas; num exercício de desconhecimento. Acordo e finjo não ter aprendido a andar, não falar português, não saber como a TV funciona. E enquanto represento, cada canto da vida se ilumina; tudo é espanto de novo. A representação nunca alcança, de fato, a primeira vez, mas faz mesuras, homenageia o fato dela ter acontecido; se lembra, ao menos, que não esteve sempre ali.
  O homem olhava para a fumaça que ele mesmo lançava como se contemplasse ondas. Não era cigarro, era de mar que ele enchia os pulmões.

  Eu vi o quanto aspirar a fumaça o deixava relaxado e suas mãos, aos poucos, pareciam mais obedientes, melhor sincronizadas. Além de fumante, soube que não morava na cidade, que fazia algum tratamento médico, que a filha tinha saído para buscar o carro no estacionamento, que tinha um rosto grave e uma voz suave, que a camisa amarela dele tinha um tecido macio, que as suas mãos tremiam de preocupação e os cigarros eram os mais baratos. De mim eu não sei o que ele soube, além da minha mão no bolso da sua camisa, meus olhos nas suas mãos e a minha pontaria disponível para uma ordem  dele.
   O primeiro cigarro acabou, eu já estava atrasada, mas não me levantava, tinha medo de que a filha dele não voltasse até o final do maço.
- Se acabar, eu compro outro? Com quem o homem fica, se a filha não voltar?
  Agora eu é quem estava tensa, o homem não. Ele fez um gesto pedindo um segundo cigarro, habilidosa, obedeci. Tirei mais um, coloquei nos lábios dele, apertei o isqueiro e o fogo, de novo, queimou o filtro. Final de julho e a fogueira possível para mim é o cigarro de um homem desconhecido que luta para levá-lo até a boca e, depois, não deixá-lo cair. Ele segurava a terceira granada e, embora mais seguro, parecia cansando da missão. O terceiro cigarro ficou mais instável, depois de alguns minutos,  e o homem ainda mais calado.

  A terceira granada ameaçou cair, eu ajudei a segurá-la. Pela primeira vez ele me olhou nos olhos, demorou um pouco para me encontrar, porque tenho andado mais escondida, num terreno mais distante, que ele soube como chegar sem tropeços. Levei o cigarro, uma vez mais, à sua boca e dispensamos o trabalho das suas mãos instáveis. Agora eu aprendia o tempo entre aspirar e exalar a fumaça, de uma vida cuja existência eu desconhecia até uma hora.
   Dois minutos depois de eu desviar o meu pudor da sua limitação eu entrava na sua vida,  abrindo  o bolso da sua camisa, segurando o maço, acendendo cigarros e, agora, segurando-os para ele fumar. Dois minutos depois dele perder uma granada, um soldado se postava do seu lado e ele ensinava que, numa batalha, a resistência era mais importante do que o equilíbrio.

  A segunda granada que ele atirou, quem  atravessou-a pelo campo fui eu. Chegamos ao fim, quando a sirene tocou e ele se levantou, deixando em meio à fumaça, um soldado inexperiente e toda a munição.
- Fica com o maço para mim, minha filha não sabe que eu voltei a fumar.
   Dois segundos depois do medo, pode ser  coragem absoluta ou um passo para trás, de costas viradas para o abandono. Dois segundos depois do medo é o choro aliviado por não ter desistido ou o covarde de nunca ter ido. Eu sei que eu devia me resguardar, pedir dispensa, desertar, às vezes, mas o fogo sempre me busca. Eu não quero ter que me desculpar por ficar sempre na área de tiro, eu não quero ter mais vergonha de ir para o campo de batalha, quando todos já sabem que o meu exército é vulnerável demais.
 
  São quase onze horas de um domingo de julho, faz muito frio, acabo de chegar salva à minha base e o meu comandante me deixou um maço de cigarros e um isqueiro de plástico vermelho. Eu que não fumava, tenho cheiro de cigarro no cabelo, no casaco, na camiseta e nas mãos. Restos da guerra que eu não me recusei a ir. Onze horas é só uma marca no relógio, este julho é o mês que não estará nos livros da escola, o frio dura menos tempo do que eu gostaria e eu não vou pedir desculpas por não evitar a proximidade com o perigo. Eu sempre vejo o mar pela primeira vez, porque não nasci nele; tenho medo em cada encontro, mas o deslumbramento sempre foi maior. Não evito o mar, ainda que eu já tenha me afogado muitas vezes.




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