quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Tem umas coisas bonitas lá fora

- Acorda, vem ver o sol.
- Não se deite, olha a lua que brilhante!
- Abra os olhos, vem sentir a chuva que cai do basculante.
- Se agasalhe, vamos lá para fora colocar nossos rostos no vento.
  Abro a janela, me aperto num dos seus extremos e convido-o para ver comigo as variações do clima, da rua, da parte do globo onde a gente mora, da vida. Não envelheço sem ver todas as cores do mundo; às vezes, nem sinto que envelheço se vejo o mundo e as cores que sempre estão mudando. Mas, mesmo da nossa janela, os sete dias da semana parecem infelizes para ele: segunda-desanimada, terça-triste, quarta-morna, quinta-infeliz, sexta-desesperançada, sábado-melancólico e o domingo de infelicidade. 

  Para Francisco sorrir eu inventei outras de mim, variei os instantes, os sotaques, o lado do partido do cabelo, busquei músicas que pudessem cantá-lo e lembrá-lo do quanto ele é bonito,  falei outras línguas, aprendi novos mantras, cavei nascentes de água no nosso quintal, poços artesianos e desci  por eles com o balde d’água pendurada numa corda. Planejei moinhos, construí pontes, carreguei pedras, produzi fogo, apontei figuras nas nuvens, teci estórias, bati os tapetes da casa no muro, para ele não se entristecer com a poeira. Fiz festas e o convidei, fiz o jantar e colhi flores para colocar na nossa mesa. Rompi com santos, inventei uma oração em que ele pudesse ter alguma fé. Mas Francisco alegra-se por fora, eventualmente e por educação; somente. Os sete dias da semana já não são suficientes para caber a tristeza dele, me pediu para inventar mais dias, mas isso eu não posso.
- Só quero que você seja feliz, Francisco, um só dia.

  Mas custa, custa tanto para ele sorrir quanto para mim tentar fazê-lo não ser mais triste. Prometi poemas, horas debaixo do pé de alguma fruta, uma viagem para o sul de carro, um caminho a pé que pode ser Santiago ou outro qualquer. Cogitei um cão, um gato, um rinoceronte ou elefante que a gente pudesse adotar e escolher nomes que eles gostassem. Sugeri mudar de casa, de cama, comprar um cobertor novo ou lençóis mais coloridos. Aprendi a medir o apartamento, nunca mais comprei algo que não coubesse nos lugares que tínhamos ou não passasse pela porta. Negociei suas dívidas, mas ele continua se sentindo muito devedor. Montei árvore de natal em maio, chamei-o para dançar quase todos os dias e ele não reaprendeu a ser feliz. Mudei de estratégia, já que a antiga não causava efeito.

  Se nada do que eu fiz ou quis fazer libertava-o dos seus olhos amarelecidos de ver o mundo, coloquei-me do mesmo lado da janela e assumi também uma infelicidade. Eu mergulhei nas zonas confusas do rio gelado e escuro de não ver mais o céu. Deitei mais vezes do que antes, fiquei mais tempo sem cantar ou ouvir música, desisti do rinoceronte e depois, do elefante. Não inventei nada e passei a achar tudo muito antigo, fui ao supermercado ver os preços, ao banco ver o saldo, à banca ver as manchetes dos jornais. Não me afetei mais com o clima, apenas coloquei e tirei casacos. Comi, dormi, tomei banhos rápidos e Francisco não me pareceu mais próximo. Nossas tristezas eram desacompanhadas e autônomas, cada uma dormia num quarto e nunca tomavam o café juntas. Não sorri, não fiz Francisco querer sorrir também. Fracassei, de novo.

  Fui alegre otimista, alegre realista, só alegre. Fui triste experimental, triste profunda e só triste fracassada. E eu me perguntava se a questão da infelicidade dele era mesmo uma questão minha e se não era, o porquê do meu desalento em não ver labaredas, quando ele abria os olhos, depois de muitas horas trancados em si.
- Será uma questão de gênero? Mulher é esta insistência?
- Será o signo lunar? Já que o solar não tem essa urgência.
- Será o meu biotipo? Largo demais, pretensioso demais.
- Ou será um destino marcado nas minhas mãos longas e dedos finos, feitas para arrancarem as angústias do coração alheio?

  Quanto mais eu abro a janela, mais fechado ele fica. Quanto mais palavras eu busco, mais calado ele se torna. As cores que eu vejo, ele só as enxerga desbotadas. Os filmes que eu escolho, ele nunca consegue assistir aos finais. As apostas que eu faço ele não acompanha. Dorme sempre antes que eu possa desejar-lhe noites macias e acorda no meio dos meus sonhos. Francisco é alguém que vive absolutamente entristecido, não espera os finais de semana, os feriados, o ano seguinte. Não espera que eu chegue do trabalho, da aula ou da padaria. Levo-o ao médico, quando queria ir com ele para o parque; compramos remédios e o sorvete sempre fica para depois. Não o chamo mais para vir ver o céu, tampouco me espremo num dos lados da janela. Não me acostumo com o seu luto e ele ainda esboça sorrisos, porque não quer me ferir.

- Francisco, tem umas coisas bonitas lá fora, mas eu não vou insistir para você vê-las agora. Temos tempo, teremos não sei mais quantas semanas tristes até você poder ver o céu de novo.
  Estamos sós, por enquanto. Eu me esforçando para não deixar que a infelicidade dele ocupe nossos espaços e ele se esforçando para abrir os olhos pela manhã. Francisco tem uma voz tão bonita, que eu não serei capaz de me afastar antes dele cantar, de novo, alguma canção. O violão nunca saiu de perto da cama, é o meu esforço mais discreto para fazê-lo chegar à janela e ver a lua.


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