
- Aqui no morro não, tem que chegar mais no plano. Aqui o carrinho vai virar e a gente não vai conseguir levantar.
Conhecem as ruas, dos buracos desviam, dos portões com cachorros se aproximam, brincam um pouco com eles ou os provocam, se não param de latir e não deixam que passem as mãos nos seus pelos; reconhecem os endereços onde os materiais de maior valor podem estar na calçada. São três crianças com cerca de dez anos, não sei quantos são meninos, se há alguma menina, se vestem com roupas parecidas, os cabelos são curtos, as vozes são muito infantis ainda, se somente os ouvisse, acharia que eram mais. Falam muito, se confundem nas funções compartilhadas, erram a direção, um solta o carrinho antes do outro, ele quase tomba, um deles grita, atribuem as culpas uns aos outros, brigam, prometem se separar e, em seguida, estão rindo na calçada, com as três cabeças encostadas no carrinho torto de três rodas boas.
Nunca os tinha visto antes, mas eles reconhecem aspectos da minha rua e bairro, muito melhor do que eu saberia. Conhecem os meus vizinhos pelo que eles não querem mais, lamentam as desistências de alguns e comemoram poder usufruir de objetos quase novos:
- Aqui, vem ver, isso aqui tá novinho! Tá até na caixa... Esse eu quero para mim, não vendo!
Conhecem os cães dóceis, sabem quanto tempo têm para atravessar cada sinal, se o síndico vai aparecer no portão para impedir que abram os sacos pretos de lixo do condomínio e os comércios onde podem ou não parar em frente para ajeitar o carrinho com a roda ausente.
Acho-os muito espertos, alegres e bem coordenados, quase me esqueço que cada um deles não tem mais de uma década de vida e que as apreensões que fazem são intrinsecamente necessárias a vida que está disponível para eles e que cabe num carrinho de madeira cambaleante. São três crianças com cerca de dez anos, fazendo escolhas, atribuindo valores, decorando endereços, equilibrando o que a cidade rejeita na precariedade que eles dirigem, estacionam, cuidam, dividem.
Estão quase no final da rua e o carrinho já está bem cheio, param em frente a um prédio, dois deles empurram o corpo na lateral do carrinho, segurando suas escolhas, enquanto o outro vai analisar os sacos plásticos fechados que estão na calçada. Latinhas, papelão, mais latinhas, uma panela sem cabo - muito comemorada - fotos, que ela guarda no bolso de trás da calça, um secador e um livro. Tudo vai no carrinho, menos as fotos, que estão no bolso e o livro que ela leva abraçada, enquanto empurra com a mão livre, o instável transporte. Se não estivessem às seis da manhã, escolhendo, recolhendo e carregando o que os meus vizinhos não quiseram mais, eram três crianças de dez anos como outras que eu já vi, chegando na escola às sete com um livro na mão.
A cidade ainda acorda e as três crianças já desafiaram o frio, o escuro, seus medos, os semáforos, as distâncias entre as suas casas e o meu bairro e o injustificável abismo que precisam saltar todos os dias, logo pela manhã.
A criança com o livro é a imagem que me captura, vou com ela. Por alguns instantes sou seu livro encontrado, sua promessa de saltos menos difíceis, sua fuga com um carrinho de quatro rodas boas, colorido por fora e macio por dentro. Queria que o livro, este que ela encontrou e com o qual vira a esquina para onde eu não vou, desse tudo o que a cidade em sono se recusa a dar a ela. Dormimos, sonhamos, comemos, damos às nossas crianças livros e colocamos capuzes rosas e azuis nas suas cabeças para se protegerem da neblina da manhã, levamos o lixo para fora, lavamos as mãos e vamos trabalhar de novo; enquanto três crianças analisam nossos desperdícios e fazem suas ausências parecerem um pouco menores com o que não nos serve mais.
Na minha primeira página, se eu fosse o livro, a criança saberia ler perfeitamente: é permitido tudo, a partir de agora. Comer nuvem de todos os sabores, deitar em cama macia de espuma delicada, brincar a qualquer hora e só empurrar o colega no balanço, para dar mais impulso e altura para voar. A partir do primeiro sim, do último não ou, mesmo, na espera pela resposta que se arrasta, perdida, em alguma estrada que não essa, tudo agora é permitido. Inclusive o que era proibido, ilegal, impossível ou ignorado. É permitido o sonho, o desejo de ser, algum dia, ou não ser mais. De ainda ser amigo depois que o amigo vai embora; de não ter que conhecer os buracos da cidade para não agarrar as rodas do carrinho, mas saber deles depois da chuva, para chutar as poças de água que se perderam do resto da chuva e esperam pelos pés que as libertem.
É permitido ter medo e alguém mais forte que o console; ter dor de dente e um horário com um dentista que o cure; ficar doente e ser cuidado, com remédios, sopa e cama. Ficar curado, sair da cama, ir para a escola e contar como foi ficar em casa. É permitido que os meus vizinhos saibam que você tem dez anos, gosta de cães, de brincar e de sorrir. É permitido sentar nas calçadas, mas também nas cadeiras das sorveterias, nos bancos escolares, nos tronos dos reinos das histórias que você ouvir, ler e imaginar. É permitido brincar com os cães dos meus vizinhos, com seus filhos, sobrinhos, afilhados e com eles próprios.
É permitido que a cidade só durma depois de colocá-la na cama e se levante antes, para preparar seu café.
A criança abraçada ao livro que não sou eu, atravessa o último semáforo, antes de eu nunca mais vê-la. A roda defeituosa faz mais falta com o carrinho pesado, as três crianças fazem força para empurrá-lo, antes de mudar de cor o painel luminoso. O peso é maior do que elas conseguem empurrar, a mão livre não é suficiente, o livro é uma escolha que precisa ficar para trás mais uma vez. Ela joga-o ao chão, as duas mãos são mais fortes, inclinam o carrinho para o alto e depois para frente, chegam do outro lado da rua, sobem-no na calçada a tempo. Os carros passam sobre seu sonho de leitora, as três crianças assistem ao atropelamento do amor de uma delas; todas parecem lamentar. Retomam sua rota e eu não as vejo mais, o semáforo fecha, de novo, eu saía da janela, mas um vulto pequeno corre e resgata o livro trucidado, ajeita as folhas soltas e abraça-o de novo.
Agora eu não vejo ninguém, mas imagino uma criança habitada da possibilidade de ler permissões infinitas em páginas coloridas. É permitido não deixar que elas precisem mergulhar nas nossas desistências; é permitido que os sonhos dos outros também sejam nossos e as suas ausências também façam ecos dentro de nós.
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