segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Uma barata não é exata

  Sei delas pelos vestígios que deixam e,  às vezes, pelo barulho que fazem ao caminharem à noite. Sei delas pela rotina inversa à minha, exploram o redor quando eu durmo, descansam, quando eu acordo; sei das suas vidas quando não as vejo. Nunca um embate, um encontro surpreendente no meio da cozinha. Elas não me dão a possibilidade do enfrentamento, mesmo assim, há a consciência das suas existências; porque elas estão na minha casa, ainda que eu não as veja. Elas frequentam os espaços mais secretos da minha vida, sem que eu as convide e possa também pedir-lhes licença quando me sentir invadida. Por saber delas,  passei a ter novos hábitos: fechar melhor os pacotes de biscoitos, guardar imediatamente as sobras do almoço ou do bolo na geladeira, sem deixar algum tempo em cima da pia; as meias finas, as roupas de tecido muito delicado eu coloquei dentro de sacos plásticos. Sem nunca tê-las visto, eu me adequei a presença delas, porque nunca houve o anúncio de uma disputa. A invasão silenciosa, discreta e lenta me preparou para hospedá-las.

  Não tenho medo de baratas, já tive, depois não tive, voltei a ter e, agora, não tenho. Passo algumas horas, antes de dormir, tentando saber quantas são, pelo barulho delas se deslocando na madeira do armário da cozinha. O que fazem, enquanto eu durmo? Sabem de mim? Alguma delas já me viu? Os armários da casa, elas chamam de casa? Baratas têm lares ou são nômades? Uma barata não pensa o que é uma barata, tampouco o que é o humano. Baratas são seres livres, resistentes e têm o medo, a aflição ou o desprezo humano pela suas presenças ao seu favor. A aparição de uma barata, causa comoção, espanto, chinelos voando, gritos, fugas desesperadas ou resoluções imediatas; baratas morrem antes de pensarem que vão morrer. A morte de uma barata não é condenável publicamente. Nunca choramos pelas baratas mortas.

  Sei delas pelos vestígios muito sutis, ainda. Não me incomodam, não há blusas furadas, pernas de baratas no pote de açúcar também não. A intensa vida noturna das minhas companheiras recentes não me acorda, elas não pisam nos meus sonhos e não chegaram até à cama. Isto sim criaria uma animosidade.  Não sei o ciclo de reprodução de uma barata; não sei se é um risco, eu não fazer nada e ter um criadouro delas nos armários do apartamento. Arrisco. Continuei por algumas semanas, vivendo como se não existissem nos armários, embora eu ainda esteja muito empenhada em  não deixar restos de comida, farelos de pão, grãos ou cascas de frutas na pia da cozinha.
  Mas as baratas têm comunidades muito ampliadas, se há vestígios delas num apartamento de um prédio, logo outros aparecerão nos outros apartamentos.  Elas se deslocam pelos encanamentos, entram pelas frestas das portas e janelas, são ágeis em subir alguns metros de parede, algumas até voam. As baratas são seres pequenos, leves, silenciosos e, por isso, se espalham muito facilmente.

  Um cartaz no elevador foi o anúncio da ruptura da possibilidade de uma convivência pacífica com as moradoras dos armários. A convocação de uma reunião extraordinária com uma empresa de dedetização, era a ordem de despejo que eu teria de compartilhar com as baratas que eu nunca vejo, mas sei que moram no mesmo apartamento que eu. Não queria a todo custo que elas continuassem a viver entre os pacotes de arroz, café, granola e feijão, que passeassem sobre as minhas calças jeans ou que soubessem que eu durmo tarde, acordo cedo e que nos finais de semana eu passo horas na cozinha, ouvindo os ensaios da moça que toca violino. Mas também não era urgente uma expulsão, o apartamento é grande, elas são demasiado pequenas para serem retiradas com jatos de veneno e homens uniformizados, de rostos cobertos com máscaras cirúrgicas.

  Que as baratas fossem embora eu não me oporia, mas uma retirada mais humanizada talvez fosse possível. Como expulsar de cada apartamento todas de uma vez? Havia uma cultura no armário da minha cozinha, diferente do armário dos meus vizinhos. A minha relação com as baratas, que eu abriguei não sei por quanto tempo, era muito específica. Eu sabia delas e talvez elas soubessem de mim, pelo que comiam das minhas sobras, pelos pisos que se acostumaram nos últimos meses, pelos meus barulhos interrompendo seus sonos diurnos.
  Eu queria, pelo menos, poder encontrar com alguma delas no chão da cozinha, quando de noite eu acordasse para beber água. Mas não tive tempo. O condomínio é organizado demais, para expulsar os intrusos, os moradores são práticos para limparem seus caminhos e eu me envergonhei de sugerir um rompimento menos abrupto.

  Na sala de reunião, uma estratégia definida num quadro: esquemas, algumas palavras, setas desenhadas com canetas coloridas. Eram elas, de um lado e nós, do outro. As baratas eram as invasoras inimigas, portadoras de bactérias, vírus, protozoários, fungos, passeadoras cosmopolitas dos esgotos, dos lixos contaminados, o vexame para os convidados, a história da nossa higiene relapsa, das condições sanitárias do bairro, rua, município. As baratas nos lembravam dos nossos desperdícios, descuidos, da nossa vulnerabilidade, mesmo em andares altos, cercados de grades, alarmes e câmeras. As baratas eram as nossas derrotas para os descuidos, para as nossas instabilidades nas limpezas individuais. Era uma guerra ao imprevisto, ao extraordinário, ao inexato, inesperado. Queriam morar: eu, minha mulher, meus dois filhos. E não: eu, minha mulher, meus dois filhos e um número inespecífico de seres asquerosos.
  Meu apartamento era um número na estratégia profissional muito bem articulada e aceita coletivamente, a cada dia da semana dois andares, o meu era numa quinta-feira. Algumas instruções de cuidados e a visita do homem de máscara cirúrgica na minha cozinha, me separando daquelas que eu nunca vi vivas, mas que sempre soube  das suas existências pelos vestígios que não puderam ou não quiseram esconder. Eu preferia matá-las com o chinelo, menos higiênico, mas talvez mais humano. Morrem com os pulmões cheios de uma fórmula tóxica, quando poderiam ser esmagadas por um chinelo de borracha que elas já teriam visto e até, talvez, andado sobre ele. Eram cinco baratas - três no armário da cozinha e duas no meu guarda-roupas - só as conheci mortas.

  O nosso medo nunca foi da barata. O incômodo não é a comunidade artrópode marrom brilhante, com pernas cujos pelos minúsculos trazem toda sorte de terríveis doenças. O medo não é da barata; morta ou viva, ela é uma materialidade. A possibilidade da barata,  nos vestígios que ela não recolhe, nos seus barulhos noturnos e o seu aparecimento inexato é o que apavora. A imaterialidade de uma presença é que é insuportável. Saber que a qualquer hora do dia, uma barata poderá ser vista; mas não saber a hora certa é o que nos apavora. Eu não gostaria de me livrar delas, porque uma barata é tão inexata quanto um humano. 
  Quase exatos, são os homens de máscara cirúrgica, que matam baratas sem nem tirarem seus chinelos. Recolhi quatro corpos de baratas com as patas viradas para cima, todas morreram assim, com a parte macia virada para o universo. Um quinto corpo eu não localizei, olhei para o gato, mas ele não confessou sua participação no ocultação do cadáver. Talvez a barata tenha fingido uma morte e se levantou quando nos ausentamos, nos minutos que eu abria a porta para o assassino distinto. Ninguém chorou pelas mortes das baratas. Eu me lamentei pelo desaparecimento dessa inexatidão dos armários do apartamento. Eu e a barata não somos exatas; que eles saibam disto, que o temor deles é pelo inexato.



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