terça-feira, 29 de agosto de 2017

Ladrão de domingos e pão francês

  Último domingo de agosto e eu ainda não fui embora. Ou foi você que não soube ir? Ou alguma das trezentas e cinquenta personagens que inventamos para matarmos depois?  Eu abandonava as suas nas esquinas, enquanto eu ia para o trabalho e você sufocava as minhas na área de serviço, enquanto eu dormia. Terá alguma sobrevivido sem sabermos? Será ela uma personagem minha ou sua? De quem é culpa pela fuga da sobrevivente? Quem deverá carregá-la agora?
  Na revista de domingo não tinha uma foto sua, nenhuma entrevista, nenhuma coluna assinada por você, você teria escrito sobre o quê no jornal de hoje? Quais as suas preocupações atuais? Assisto ao jornal da noite e imagino o que indignaria você; ainda assiste ao jornal das onze, naquele canal da TV paga? Nem sei se moramos no mesmo país; nem sei se chegamos a morar. Leio o seu signo na previsão do jornal, porque é o mesmo que o meu, senão não leria. Leio o meu ascendente também, mas não sei o seu; se não fosse o mesmo que o meu eu não leria.

  Quero comer um pão francês, mas a padaria mais próxima não abre mais aos domingos, vou na mais distante mesmo, talvez eu consiga pegar um pouco de sol. O gato sempre chega com o pelo quente, mesmo nos dias muito cinzas.
- Que raio de gato esperto que até sol escondido ele acha! Que raio de gato discreto que não me conta onde se aquece!
  Vou buscar pão francês e sol, ao menos o pão eu sei onde encontrar. Pelo caminho, vinte rostos conhecidos, cumprimento todos eles, no domingo sou especialmente bem humorada. Pensava no sol e no pão, mas de repente, veio a dúvida: terão esquecido você? Se conheceram você, por que não perguntam mais? Sou adulta, não me magoaria responder. Mas não perguntam, me cumprimentam, sorriem e nada. Ninguém se interessa mais por você ou preferem não perguntar. Talvez saibam de você e eu é quem não sei mais. Não importa. Uma fresta de sol ilumina a avenida, vou por ela, feito o gato.

  O pão estava quente ainda, a padaria não estava muito cheia, porque não terminou a missa ainda. Escolhi um doce, pedi para embrulhar junto com o pão e vi alguns fiéis saindo da igreja antes da bênção final, para tirarem seus carros das primeiras vagas do estacionamento, sem tumulto. Finjo que confiro o troco,  enquanto a caixa simpática coloca a sacola pendurada na minha mão. Acho engraçado o jeito materno dela enrolar a alça da sacola em quatro dedos meus.
- Para não soltar.
  Sinto saudade da minha mãe, enrolando sacolas na minha mão. Aos domingos minha mãe sempre aparece. Disso você já sabe.
  Não teve seu nome, anunciado pelo comentarista na missa que eu não fui. Uma missa em intenção de quê eles rezariam por você? Você acredita em alguma coisa, agora? Para qual entidade você chora? Tem alguma? Qual era mesmo o santo de devoção da sua mãe?  Não importa. Esqueci tudo mesmo.

  A sacola não caiu nenhuma vez, um pouco de sol me acompanhou até em casa. Comi o doce antes do pão com manteiga. Fiquei no sofá algumas horas, lendo um capítulo do livro, conversando com o gato, olhando para o teto e trocando canais da TV. Não teve a reprise de nenhum filme que assistíamos juntos e eu comentei com o gato.
- Nem reprise de filme para me lembrar dele. Engraçado, né? Parece que sumiu mesmo.
  Li textos curtos, compartilhados nas redes, participei de passeios felizes de conhecidos virtuais, mas você não apareceu em nenhuma foto deles. Não que eu estivesse procurando-o, mas me dei conta disso também. No livro antigo que eu lia, passei as páginas procurando alguma marcação que não fosse minha, mas aonde eu não fui, o livro parece novo, não tem nada. Nenhum sinal seu nesse domingo, naquele livro, TV, jornal, anúncio na missa, cartaz na padaria, curiosidade e educação dos vizinhos, fotos ensolaradas de domingo, nada. Não me importa. Antes do almoço, coloco os tênis de corrida, preto e amarelo, vou caminhar pela cidade mais vazia. O domingo é cinza, as ruas estão sujas, os muros pichados e eu olho mais para parte de trás dos prédios do que para as fachadas.
  Como são bonitas as construções vistas de trás. Roupas penduradas em varais bambos, pedaços de parede sem retoques de tinta, vidros diferentes numa mesma janela.

  Naquele agosto, achei que não ia suportar, mas ao mesmo tempo sabia que iria, mas às vezes do nada, num domingo à tarde, me dá um vazio, parece que a sua voz entra pela sacada, sabe? Levanta, fecha a porta, mas a voz é dentro. Por que é que a resolução de aceitar não é o bastante? Por que correr com o tênis preto e amarelo não me afasta do que não quero mais me lembrar?
  Sinto a culpa da minha inteligência não conseguir me tirar desse lago de questões. Me afogo, enquanto sorrio, volto à superfície várias vezes para não acharem que eu desaparecerei de vez. Às vezes penso se ele também ainda ouve a minha voz, às vezes gostaria que sim, mas quando sou boa, gostaria que não. Os domingos não me mandam sinais de você, mas eu ainda espero encontrar uma marcação com a sua letra no meu livro. Para quê?
  Volto suada, não tenho lágrima. A corrida é quase tão potente quanto os olhos julgadores do gato.
- Calma, vou fazer nossa comida. Fui atrás do sol, também tenho direito.

  Agosto acaba na sexta, nenhum mês é mais doloroso do que este, toda vez que o inverno acaba eu me sinto mais distante de você e com bem menos amor. Ao final dos invernos eu me sinto mais cansada, como se tivesse custado mais a viver, menos vida, mas mais difícil, sabe? Como se eu escalasse cordilheiras geladas e, agora, voltasse para casa. Machucada, com dores no corpo, faminta, solitária e um pouco perdida na cidade, ainda.
  Ao final do inverno eu tenho tido cansaço e esperança, como se começasse o ano sempre agora. Disso você não sabe. Não importa.

   Cantei uma mesma música durante o dia e não chorei. A parte de trás do meu apartamento está visível agora.
- Olhem meu cobertor antigo pendurado no varal. Meia parede descascando e um vidro  ondulado no meio dos outros três lisos!
 Pior que a saudade é a consciência de que ela não nos abandona, mas passa a fazer parte de um mobiliário permanente.
- Ano que vem pinto-a de turquesa!
 Eu passei o domingo com você, ninguém soube, não vão me perguntar nada sobre como tem passado. Mas e você, o que tem feito, além de roubar meus domingos?
  Fui eu quem falhou em matar todas as personagens. A personagem restante é sua e volta sempre para comer uma fatia do meu pão francês. Eu e o gato almoçamos quentes de sol e de nós. Não me importa se nunca mais ouviu a minha voz, ela mudou muito.



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