quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Meu poema não comove Madagascar

  Seiscentos e setenta e cinco poemas depois e nenhum deles salvou você. Quase setecentos textos-sentimentos e por  nenhum você chorou inconsolável na sua cama de molas, sem cabeceira; também não voltou a sorrir para o espelho embaçado do banheiro. Centenas de folhas de papel, sem carimbos, autenticação nenhuma, sem cartórios nem filas, sem avalistas nem fichas e não te libertaram do medo, das perdas ou das culpas; por que tanta culpa? Uma pequena biblioteca de argumentos-imagens e você  entendeu algum, dos poucos que tentou ler? Quis estar ou ser um deles? Sentiu como se alguma parte do seu corpo queimava ou, ao menos, os dedos formigaram?
  Meus poemas de amor nunca tiveram um destinatário; os de política nunca desarticularam regimes, descreditaram  poderes nem revolucionaram caminhos; meus poemas de súplica parecem tão cínicos, que não servirão aos arrependidos, os de exaltação nunca tiveram elogios suficientes. Quase setecentas frustrações escritas.

  Meus poemas de amor sempre escorregaram noutras mãos antes de chegarem, sujos, às suas; mas não peço desculpas, porque quem demorou a chegar foi você. Os poemas já estavam prontos.
  Meus poemas de amor que eu escrevi no trem, no ônibus, no elevador e em escadas rolantes, meus poemas-movimento sempre chegam aos mesmos lugares. Meus poemas viajantes que não cruzam o Atlântico, que não são conhecidos em Madagascar, que parecem estrangeiros na minha rua e que em inglês não soariam bem. Meus poemas desencontrados das linhas, perdidos dos temas, misturados com restos de linhas, miçangas e pedaços de incenso que não chegaram a queimar, no fundo de uma gaveta que eu nunca abro. Meus poemas em folhas amarelecidas de tempo, no futuro, herança encontrada por algum parente que eu não conhecerei.
  Meus poemas engajados que duram duas linhas e depois viram outra coisa, que escrevo enquanto assisto aulas de estatística. Meus poemas de súplica que nunca chamam deus nenhum, nem falam de céu, que eu escrevo na fila do caixa eletrônico em data de pagamento, todo dia cinco. Meus poemas de exaltação que falam de amor, política e súplica, e que de tão humanos, não têm adjetivos suficientes.

  Meus poemas nunca salvaram alguém que se afogava em mar, rio ou lago, um gato preso na árvore, um cavalo perdido num incêndio de uma floresta. Nunca devolveram a uma criança a sua infância desrespeitada desde o nascimento, não fizeram companhia a nenhum solitário; não salvaram da vida o infeliz para sempre; não fez dançar o pragmático. Meus poemas tão desajustados que não couberam nos cadernos, meus poemas dobrados dentro de algum livro, nunca mais vistos -  poemas esquecidos, esquecíveis na mochila e no armário.
  Meus poemas não salvam ninguém, nem a mim, que fico mais perdida a cada vez que faço um poema. Meus poemas escritos em três dias, lidos em três minutos e abandonados eternamente. Esse é o último verso, da última estrofe, que eu ainda não cheguei a escrever.

  Mas meus poemas sem métrica ou rima, são mais livres do que eu e você, que chegamos às oito no trabalho e saímos às seis, com uma hora de almoço. Poemas democráticos, que sempre têm um porteiro, um céu cinza, um gato, um vestido azul, um cobertor curto, uma criança que não fala, um velho que não escuta, um sapato perdido, uma música que eu não conheço, um violino, uma sirene de ambulância, uma urgência, alguma paciência demorada, os olhos perdidos da minha avó, as mãos macias da minha mãe, um avião que não cai, um motorista que sorri, um rio com margens largas, difíceis de atravessar, um homem melancólico, uma mulher que resiste e um elefante; sempre têm elefantes os meus poemas. 

  Meus poemas amorosos acabam antes que eu escreva um final, antes do ponto, num suspiro de desistência que não dura, quase sempre.
  Meus poemas políticos falam de uma república que eu não entendo absolutamente, de covardias que eu não gosto de lembrar, são tecidos com palavras que dizem outras coisas, diferentes de outros poemas, que dizem o que devem dizer. Meus poemas engajados mentem para dizer o que eu não queria.
  Meus poemas de súplica e exaltação não existem. Nunca existiram. Porque não sabem pedir desesperadamente ou elogiar com completa condescendência. 

  Meus poemas inventados que não descobrem a solução para os problemas do mundo, uma vacina, a cura para a calvície ou enxaqueca. Meus poemas que não entendem de matemática, que subvertem a física e que morrem de amor pela química, sem compreendê-la. Meus poemas não lavam a louça, não mandam os filhos de banho tomado para a escola nem pagam o ônibus para a vizinha visitar sua filha em Santa Rita do Jacutinga. Meus poemas não são traduzidos, não são lidos, nem visíveis no eclipse. Meus poemas nunca foram encontrados nas salas de espera dos consultórios médicos ou odontológicos. Lá, só revistas, conversas, uma TV ligada e um aquário. Tampouco a professora pede para que descrevam o eu-lírico. Quem é o eu-lírico dos poemas que eu fiz e nunca enviei a uma pessoa?

  Meus poemas desnecessários, enchem folhas de papel em branco que sempre vão ao lixo. Não empregam, não pagam impostos, mas também não utilizam os serviços públicos. Meus poemas escondidos, sufocados no fundo de uma gaveta. Gritam palavras de ordem, convocam manifestações, criam marchinhas debochadas para ver se conseguem escapar do controle.
  Queria que um deles salvasse um minuto da vida de um destinatário que eu não conheço. Setecentos poemas eu fiz e nenhum deles é para você ou é meu. Setecentos poemas de amor e nenhum nos salva hoje. Amanhã mais um elefante vem passear pelo poema novo. Os poemas que nunca salvaram, continuam ser escritos para que salvem, quem sabe, um minuto de alguém em Madagascar.






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