domingo, 20 de agosto de 2017

Um leão à porta

  Às vezes, numa segunda de manhã, custa mais levar o lixo para fora do que construir uma catedral. Aprender geometria, comprar compasso e grafite, estudar os ângulos e traçá-los no papel, refazer dezenas de vezes o mesmo projeto, chamar os homens que sabem levantar uma parede, subir os  tijolos, aprofundar as vigas, descarregar o cimento, fazer a massa, cortar o mármore, subir em andaimes por meses,  pintar afrescos no teto, colocar cuidadosamente os lustres de cristal em cada bocal e, depois, descansar na beleza. Levantar uma catedral custa menos do que fechar a sacola, abrir a porta e colocar o lixo para fora. 

  Escalar uma montanha gelada sob uma tempestade, às vezes, é menos desafiador do que chegar, completo, ao outro lado da mesa. Perder o caminho, anoitecer sozinho sem saber em que altura está, não poder fechar os olhos, mas não conseguir mantê-los a todo o tempo abertos, não comer, ter que  suportar as dores do corpo e àquelas que não sabemos onde apertar para fazer latejar menos , congelar a ponta do nariz, dos dedos, achar que o próprio cérebro sucumbirá à baixa temperatura, ter medo dos deslizamentos, dos animais. E depois, do cume, ver todo medo ser atravessado, sem bússola. Para chegar ao outro lado da mesa é preciso duas disposições sincronizadas, olhos para o invisível e a escuta generosa dos silêncios não avisados. O alto da montanha gelada é mais acessível do que o outro lado da mesa.

  Às vezes, custa mais chegar às dez em ponto do que esperar por uma década, em frente à porta. Passa a noite em claro, adormece  pela manhã, não ouve o despertador, acorda já muito atrasada, o vizinho estaciona o carro muito próximo e não consegue entrar no seu, o sono dele é mais pesado, a porta demora abrir, o botão da calça se solta, desiste do vizinho, o táxi não chega, o ônibus passa muito cheio, a chuva atrasa o trânsito. Queria um barco para fugir da agenda marcada às dez. Já são dez e meia e precisará pedir desculpas pelos trinta minutos de olhos fixos nos ponteiros,  para o encontro indesejado. Passar dez anos numa sala de espera para ver quem gostaria, de fato, custaria tanto menos. Tomaria todos os cafés, abriria a porta para as outras mulheres, se despediria delas com dois beijos, ficaria amiga de todas as secretarias e nunca reclamaria da década instalada na sala, perto do ar condicionado.

  Numa festa íntima, às vezes, custa mais recusar uma bebida, oferecida pelo garçom do que contar uma infidelidade do companheiro da amiga. Anunciar que precisam conversar, com gravidade na voz, escolher um lugar sem testemunhas e que seja confortável, pegar as mãos da irmã, olhar com compreensão para a dor que ela vai sentir, escolher as frases certas, ser verdadeira, ter que lançar um míssil com o máximo de precisão, mas apertar o botão com delicadeza. Vê-la chorar, querer chorar com ela. Um abraço molhado que custa menos do que não aceitar a bebida, mesmo querendo muito não estar mais sóbria. A amiga se recuperará da traição, que só vai ser um episódio triste da sua longa história amorosa, mas a bebida precisará ser recusada diariamente. A infidelidade se limita a um tempo, as recusas precisarão ser permanentes. 

  Às vezes, é mais fácil sepultar alguém a nunca saber se ele ainda está vivo. Preparar a despedida, tomar um banho, recusar a roupa preta, mas saber que o luto permanece dentro, ser consolada a todo tempo, não poder esquecer que vai a um velório, quando fala ao motorista o lugar de destino. O taxista é solidário e respeitoso: não liga o som, fala baixo, não começa uma conversa. Os olhares mornos, os perfumes se misturando nos abraços, o estômago vazio, o café em copo descartável, cheio de açúcar, os adjetivos, os verbos no passado, as flores, a mão fria, as orações, um pedaço de bolo de baunilha, o cortejo, as pás. Custa menos os passos dados ao fim de uma presença, a andar perdida sem saber se haverá reencontro ou existe uma vida secreta ainda. Acostumar-se à morte custa menos do que prender-se a uma esperança de regresso.

  Custa menos conhecer um amor novo, do que esquecer o antigo. Identificar as manias, saber os filmes, discos, shows, livros, poemas, a palavra da língua portuguesa, a língua estrangeira, o instrumento musical, a artista, a música, a bebida, a comida preferida. Perguntar sobre os sonhos, decorar os nomes dos familiares, as datas da relação e de todos que a cercam, escolher um apartamento - sacada ou quintal? -  o que cada um vai levar, a quem vão contar primeiro, fazer uma festa, ganhar um tapete da Frida Kahlo - onde não puderes amar, não te demores -  nunca chamar o novo amor pelo nome do antigo é mais fácil do que esquecer a íris dos olhos de quem se amou muito. 

  Às vezes custa mais levar o cão para passear depois do trabalho do que na volta, encontrar um leão à porta. Porque se um leão estivesse à porta, algum enfrentamento era necessário; sem adiamentos, sem passos para trás, sem espera. Nenhum grito, nenhum nome chamado, nem oração nem ligação para o órgão responsável; não haveria tempo. Olhos fixos no leão, o coração pulsando muito rápido e a decisão de ser tão animal quanto ele. Um leão à porta doeria menos do que uma correspondência de banco deixada no chão. Vou dormir e acordar com a esperança de um leão à minha porta. Não sou feita para o ordinário, ninguém devia ser. Custa menos estar perdido numa floresta fechada do que ser encontrada, para sempre, pelo Google Earth.



4 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 02 de setembro de 2017

Amanda

Decisões ... puxa vida, como são fáceis quando o outro as toma. Você expõe as vísceras dos nossos medo de uma maneira plácida.

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 03 de setembro (atravessamos o portal de agosto, ao menos) de 2017 (mas o ano parece ainda 2016)

Sim, Paulo, as catedrais parecem ser bem mais fáceis de serem erguidas, às vezes.
- Ninguém falou que seria fácil. (Uma voz ao fundo grita).

Abraço,
Amanda

Paulo Abreu disse...

Sim, catedrais serem forma uma obsessão à parte. Há um livro do Ken Follet - Os pilares da Terra, onde trata dos pecados capitais em torno da edificação do templo, lá no século XII. Traduz bem este seu raciocínio - catedrais-pessoas

Amanda Machado disse...

É? Anotarei então a dica...vou lá entender a questão, assim que puder. Grata. Abraços