quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Estranho o seu nome

   Estranho o seu nome, que não é estrangeiro, não tem letras duplas ou importadas do alfabeto de outra língua. Estranho porque é comum, familiar, fácil de escrever e com pronúncia melodiosa. Nome que parece morar na minha memória antes do meu. Estranho o seu nome, porque ele cabe nas minhas mãos, olhos, costelas, boca, ventre, nuca, coxas, pulmão, sola dos pés, cotovelos e costas. Estranho o seu nome, quando ouço alguém chamá-lo, mesmo que seja em outra pessoa; é seu o nome. Estranho de querer repeti-lo muitas vezes, silenciosamente, de ouvi-lo em todo lugar, mesmo que ninguém o pronuncie. Estranho de não saber como me desviar dele, não deixar de anotá-lo numa folha limpa do caderno, no bloquinho da gaveta da cozinha, do lado das listas de compras. Estranho porque nele contém a história de uma pessoa inteira. Porque não é um substantivo próprio na minha gramática. Estranho seu nome: adjetivo, verbo, pronome, artigo completamente definido. Estranho seu nome, porque dele e nele vivo. Porque não sei gostar de falar nenhum outro, como falo e penso falar o seu nome. Estranho o seu nome porque não pertenço a ele. Estranho, por não querer me agarrar a nenhuma das sílabas dele.

   Estranho a suavidade dos seus olhos sobre a fatalidade das coisas; para o fim, para a mentira, para a traição, queda, para a ilusão destrançada pela mão da jovem loira em frente ao espelho. Estranho a sua atitude amorosa com a mulher na fila do banco e a sua ajuda com o cartão dela, sua habilidade em confortar no esquecimento, na dor, nos atrasos e falhas do outro, até com você. Estranho sua potência em falar de luta e em sonhar com a revolução feita de afetos. Estranho a docilidade cândida de um santo, num homem de calça jeans, camiseta e suor. Estranho sua melancolia em festa, seus sorrisos doloridos, sua insônia povoada de sonhos. Estranho sua coragem cor de pele, transparente, sem acessórios. Estranho a nudez das suas ideias e como elas se confundem com a cadência do seu coração no peito. Estranho sua paciência ao esperar a comida e seu desatino em amar. Estranho, porque não quero querer isso.

  Estranho sua voz ao telefone, porque não me lembrava da facilidade com que ela encontra os meus ouvidos. A rouquidão em ressaca, a paz do som em cada final de frase. Estranho, porque deixo o telefone tocar mais vezes do que o necessário para prolongar sua expectativa e preparar o silêncio ao meu redor. Estranho cada palavra sua pronunciada em meu destino, são cartas perfumadas que eu guardo na gaveta. Estranho saber de você, quando eu não o vejo. Estranho que num aparelho tão pequeno sua voz chegue tão certa, exata e tão limpa. Estranho a tecnologia que me alimenta da poesia do seu som. Estranho gostar mais de ouvi-lo ao telefone, do que um concerto de Mozart ou uma música do Chico. Estranho guardar suas mensagens de voz e ouvi-las, para gostar mais de viver em um dia muito difícil.

  Estranho seu cabelo que não é liso nem cacheado, não é escuro nem claro, não é ralo nem volumoso. Estranho quando o corta muito ou deixa-o crescer. Estranho o cheiro do seu xampu, de flor do campo ou ervas, que agarra nas minhas almofadas e que por isso quase nunca as lavo. Estranho que você use um chapéu que eu nunca vi e que se proteja do sol depois das dez da manhã, quando foi que isso começou? Estranho quando você puxa o cabelo para trás e exibe sua testa alta e quando você joga-o para frente e esconde um dos olhos, sob uma mecha de cabelo sedoso. Estranho quando a minha mão se abre em cima da sua cabeça, depois, se fecha e eu não arranco um só fio do cabelo que eu não reconheço nunca. Estranho porque tenho medo que as capas das minhas almofadas sejam jogadas dentro da máquina de lavar, por engano.

  Estranho suas partidas depois do jogo, do filme, da saideira, do banho, da noite, do fim da festa, dos doze mandamentos, dos sete pecados, das onze horas. Estranho que você voe para outro estado e país, que ainda não tenha visitado a lua e que esteja sempre se anunciando ou se despendido. Estranho as suas voltas de bicicleta pelo quarteirão, quando está cansado. Estranho que nunca tenha dirigido nesta cidade e que esteja sempre de malas prontas para partir. Estranho que você carregue tanto e tenha tão pouca bagagem. Estranho que as suas caminhadas demorem anos e que nos seus pés não tenham mais bolhas. Estranho que ir embora seja uma prerrogativa para você ir a todos os lugares que quiser. Estranho porque não sei quando o seu voo pousa na minha cidade. Estranho porque não quero estar no saguão, eternamente, esperando um voo que não vem.

  Estranho sua proximidade, mesmo se está na China.  Estranho querer dividir assuntos que agora estão em pauta e eu não sei o que você pensa sobre eles; suspeito, mas não tenho certeza. Estranho que o seu nome não se apague depois de você ir, que na agenda do meu celular tenha uma foto sua de costas. Estranho que nas filas do banco eu me sinta mais vazia, que as mulheres com problemas nos seus cartões pareçam fatalmente desassistidas. Estranho que as outras vozes sejam todas parecidas entre si e muito diferentes da sua. Estranho rodar pela cidade e não achar o cheiro do seu cabelo em nenhum vidro de xampu. Estranho não me acostumar a me despedir nem para dormir. Estranho porque não quero ser a guardiã de histórias bonitas de narrar e nunca ser a personagem.

  Estranho escrever para alguém que não me lê, mas que sabe mais de mim do que as centenas de páginas que eu lancei em garrafas. Estranho querer que a minha voz ecoe, se faço muito silêncio para  ouvir uma que não é minha; única, preciosa e inumana. Estranho costurar roupas e nunca ter um vestido novo, colher flores e não ter um só vaso cheio delas ao lado da minha cama. Estranho as primeiras horas de cada manhã e as últimas de cada noite. Estranho o vinho, o violino, a Marselhesa, a Grécia Antiga  e as notícias de todos os dias. Estranho não saber nada e achar muita coisa. Estranho a insuportável beleza de saber de você neste mundo. Amar talvez seja, também, estranhar.





2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, ainda que tardia, 26 de outubro de 2017

Querida Amanda,

Hoje, pela primeira vez, copiei e colei parte de um texto seu, com os devidos créditos, claro, e espero que não seja repreendido por isto.

O fato é que havia escrito um poema sobe amores que passam pela correnteza do rio doa voda enquanto somos observadores da margem oposta. Como saber se é oposta? Não se sabe, mas se está fazendo algo que se opõe ao seu desejo e a correnteza leva, então é oposta mesmo.

Seu texto acima é uma destas aulas imperdíveis de perceber a outra pessoa nominada e denominada. deve ser assim que se explica o inexplicável.

Mas o primeiro parágrafo, caramba, quando li, vi nele uma poesia linda, irretocável, leve, que vai carregando as palavras feito um corpo de deslocando num imenso tobogã - começa lenta, vai num crescente, e agente se sente livre, abraçado com a segurança que tudo terminará num porto seguro, cadenciado e épico.

Puxa vida, que poema é este que existe dentro das suas palavras?

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 27 de outubro de 2017 (desde ano que quase finda, mas parece ainda o anterior)

Querido Paulo,
sinto-me lisonjeada pela citação em seu reino...muito mesmo! Fico feliz que tenha gostado da estranheza do texto e tenha visto poesia nele. A sua leitura sobre amores-margens, amores-correntezas é emocionante...me parece uma percepção muito sincronizada com as linhas que que coloquei no papel (tela).

Obrigada pela leitura, citação e conversa que sempre ilumina mais o texto e o dia da autora.
Abraços,
Amanda