domingo, 22 de outubro de 2017

A moça do castelo

  São seis da manhã e eles dormem, dormirão até às dez,  que é quando o banco abre as suas portas. Ou, talvez, até um pouco mais cedo, quando a fila em frente ao prédio começa a se formar. Passo atrasada, correndo e tento não fazer muito barulho, ando ao lado da cama deles porque o caminho é mais curto. Tento não roubar a intimidade dos seus sonos, procuro não romper com as paredes invisíveis que defendem as suas particularidades e, principalmente, busco não pisar nos seus sonhos, tão próximos aos meus pés. Passam alguns minutos das seis e eles dormem debaixo dos seus cobertores xadrezes. Antes de perder o meu ônibus, quebro a promessa da minha discrição e olho para cada cama, não vejo nenhuma cabeça saída dos cobertores, porque sabem estar muito bem guardados enquanto sonham.
  Mas perscruto seus pertences, busco neles algum fragmento do que também é meu e que, certamente, se identifica com a escova de dentes verde dentro de um copo de plástico, com um pedaço de pente caramelo amarrado a um espelho de moldura laranja, um livro que se parece com uma bíblia, um par de tênis pretos com os solados tortos de muito uso e pisada supinada, como a minha, e  dentro de um plástico transparente, no final da fileira dos objetos, perto da última cama, uma coroa de flores de plástico, florzinhas brancas, delicadas, com muitas falhas em pétalas e folhas, um arco salpicado de outono.
- É dela.

  Só há alguns meses eu soube que entre os sonolentos vizinhos havia também uma mulher. Já foram cinco cobertores, no inverno apenas três e, hoje, contei sete camas. E numa delas, suspeito que na última, ela ressona. Do lado da tiara de flores, o cobertor se move, eu me afasto, antes que os pés encontrem os sonhos de alguém, cuja privacidade maior, só é possível quando suas pálpebras se encontram. O refúgio manso da mulher que passa seus dias na praça, na calçada do banco, entre gritos, buzinas e violências de toda espécie,  é aquele único, onde ninguém pode alcançar. Passo pelos sete cobertores e nenhuma cabeça se levanta para reclamar da minha indiscrição.

  Foi no estacionamento da farmácia, do lado oposto ao banco,  que eu ouvi a sua voz suave, muito clara e aguda, pela primeira vez, quando ela me pediu absorventes. E só nesse pedido eu soube da nossa partilha biológica. Não foi pela voz de menina, nem pelos ângulos delicados, não foi o nariz pequeno, nem pelas orelhas com pedras coloridas nas suas pontas, não foi pelas mãos pintadas de esmaltes que crescem com as unhas ou pelas pulseiras que ela ostenta nos dois braços e anéis nos dedos dos pés,  eu só soube que entre os moradores da praça havia uma mulher, quando ela me pediu absorventes íntimos. Ela sangra e procura uma mulher qualquer para pedir absorventes. Por quanto tempo eu não soube dela? Quantos dos seus ciclos têm sido na rua?   

  De longe, sua identidade permanece oculta. No último mês, quando o número de camas na calçada chegou a sete, me detive a olhá-los mais, tentei identificar a moça, para entregar a ela mais alguns absorventes. Ela estava sorrindo, brincava com um cão e usava a tiara de flores. Louca, livre, transparente, alegre. O opaco parece não caber na rua, o corpo misterioso e a higiene discreta também não. Ela aparece e some; desaparece e reassume a praça. Em alguns meses não a vejo, ela não mora mais lá, mas depois volta. Capitã, líder, pajé, mãe, irmã, ela é um corpo franzino e uma voz suave que dá ordens, fala palavrões e cospe nos companheiros quando é desafiada.
  Uma coroa de flores no cabelo, ornamento alegre em uma cabeça ferida, de cabelos que não sobreviveram à rua.

  Tão mulher quanto eu, às vezes mais do que eu e, tantas vezes, muito além do que eu sei ser. Ela não mora num lugar só, não tem cortinas, banheiro, caixa de correios, o lugar da sua cama varia com o clima, com as chuvas de verão e as baixas temperaturas do inverno, com a posição do sol, com as políticas de proteção à estética da cidade, com as disputas de território, cujas leis são mais eficientes que as escritas,  com as abordagens  dos sistemas de segurança que não a protegem e nem querem. Porque ela é o medo dos outros e não o contrário. De quem ela tem medo? Quais os pares a mantém segura? De volta à praça, ela tem um arco com flores salpicadas na cabeça, tem céu aberto, tem um mapa para o infinito, medo e bravura.

- Trouxe absorventes.
  Falo de longe, ela vem devagar, não confia e não reconhece o meu rosto, pega a sacola, agradece, sorri e vai embora. Sou eu, agora, sozinha na praça.
- Vamos chorar, moça, vamos molhar toda a aridez da maldade, da violência dos olhos que não sabem dos nossos vazios, tampouco desconfiam das nossas abundâncias; vamos ventar quando for impossível sair do lugar, vamos mover juntas as pessoas e objetos que trancam as nossas janelas. Com as labaredas dos nossos ossos, vamos incendiar as árvores das ruas do centro da cidade, podadas a cada quinze dias, e fazer uma fogueira enorme para dormirmos quentes e seguras.  Eu perdi muitos  ônibus, enquanto velava seus sonos, cheguei atrasada, com o cabelo solto, sem nenhuma flor que anunciasse beleza, toda cinza, sonolenta e sem um sonho para lembrar. Eu que acordo antes das seis, mas não dependo que a noite silencie para ir para o meu regaço, talvez tenha menos sonhos do que você, moça de cabeça enfeitada.

  A moça em seu castelo na praça, no banco, no mundo cinza, que não é princesa, imperatriz ou duquesa, mas guardiã do próprio sono, usando uma tiara de flores falhadas, de tecido e plástico.
A moça do apartamento, da sala branca, no mundo verde, que não é uma atriz, escritora, bailarina ou professora, mas guardadora dos sonhos dos outros, usando um lenço marrom de estampas geométricas. As duas sangram e se enfeitam. As duas tremem de medo e cobrem a cabeça para se salvarem. As duas pintam as unhas e descolam as cascas dos machucados no joelho. As duas conhecem uma mesma praça, uma com os pés e outra com os sonhos.  A insistência da delicadeza é o que escapa da vida bruta.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 29 de outubro de 2017

Querida Amanda,

Sua diferença é a não indiferença, a percepção do outro em seu mundo. Que coisa mágica, fantástica - olhar, ver e perceber na mulher a mulher que há nela, desprovida de todas as modernidades sólidas e líquidas deste mundo maluco.

Seu altruísmo é edificante.

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 30 de outubro (outros virão) de 2017

Querido Paulo,

estranho seria não ver o que é tão latente e a razão maior da nossa experiência por aqui. A humanidade, às vezes apavora, mas justamente quando não se vê.

Obrigada pela vinda. Uma ótima semana!
Amanda