quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Um dia branco

  Um dia branco que mal aparece no calendário, sem grifo, sem marcações, só um dia na agenda da bolsa, no documento com as assinaturas de testemunhas, no quadrado vazio na tela do celular.
  Um dia branco, que segue atrás de um pôr de sol alaranjado. No final do dia, quem sabe, a recompensa?
  No dia branco, uma bicicleta faz pequenos círculos, na pista de corrida pintada de verde, talvez desequilibre, depois de ficar tonta. Uma outra segue reta, segura, lenta, sem perigos. A que faz curvas, às vezes parece perder o sentido: esquerda, direita, direita, esquerda de novo. Não parece ir a lugar algum. Duas rodas naufragadas em um mar verde de sossego. A bicicleta em círculos sobrevive solitária no seu descaminho alegre. Os pneus parecem flutuar. A bicicleta da trajetória certa, quase não venta, não ocupa muitos espaços; trem de ferro, desfilando sobre trilhos. Os pneus parecem lutar contra a pista verde de tinta desbotada.
  As bicicletas se esbarram, os ciclistas se desculpam e seguem, cada um o caminho que é o mesmo, pista verde, mas em direções desencontradas. As bicicletas são mais sentimentais que os seus donos, elas, sim, ficam marcadas.

  Um dia branco que não é vazio, porque tem horas nele, tem gente que passa, cumprimenta, tem gente que pergunta até como vai. Um dia com cães, com carros de som, com inauguração de supermercado, com carros e buzinas em pista dupla. Um dia com bêbados, semáforos, vendedores de planos de saúde, com pipoca na saída da escola, com mãe que não compra, porque já é quase hora do jantar. Um dia com pais que não depositam a pensão, com mães que não têm tempo de fazerem as unhas e um filho que não comeu pipoca. Um dia com estacionamento cheio, voltas no quarteirão para achar vaga, trinta centavos para o flanelinha, uma multa, um sistema que ninguém sabe como funciona e é, por isso, que é infalível. Um dia branco, porque alguém esqueceu de pintar, pulou uma página e a história continua, mesmo com o desenho sem cor.  Acordar num dia branco dá o íntimo desejo de dormi-lo inteiro.

  Um dia branco que não é ausência, porque veio quem disse que viria e quem não vinha, não vi se veio. Um dia branco que passa ao largo de quem não o viu e encosta suave e ameaçador em quem o reconhece. Um dia branco, com uma arma na altura da nossa fragilidade:
- Passa, passa tudo e não olha na minha cara!
  Um dia branco, atravessando os corredores dos apartamentos, o hall dos prédios, da rua até à praça, as avenidas, a cidade, o país, carregando os tons fortes, os reflexos, três reais e setenta e cinco centavos, um cartão do banco e o cartão de visita do dentista. Um dia branco com horas que duram meses, cujo pôr do sol parece longe demais para existir.

  Um dia branco e aquele único homem, sem pentes, sem escova de dentes, sem previdência privada,  atravessa a cidade com um violão nas costas, papel e caneta, e diz que está terminando uma música.
- Me ajuda?
Eu queria, mas não posso.
- Não sei fazer junto.
  Ele vai morrer, eu sei e ele sabe, e só deseja, sofregamente, fazer mais músicas e este é o motivo único que ainda o prende à vida.
- Você me entende? Eu preciso fazer só mais essa.
  Eu queria, mas não posso. Talvez eu prefira viver a fazer músicas, ele eu sei que não. Já me disse. Ele é maior do que eu sei ser.

  Um dia branco, porque ninguém se converteu na minha frente, ninguém descobriu um novo santo ou  renunciou a uma fé instalada. Ninguém se adiantou à procissão, não perdoaram os sete pecados, mas inventaram novos. Ninguém ofertou o que tinha em conta nem devolveu o troco do que recebeu e não precisou. Um dia branco, porque um poeta morreu, num ataque fulminante, com seus manuscritos na escrivaninha e nenhuma editora atendeu aos seus telefonemas de socorro e despedida. Um dia branco, porque o velaram numa igreja e não numa biblioteca ou praça pública. Branco dia, porque nenhum dos poemas dele era para mim.

  Um dia branco, porque eu só tenho um quarto de garrafa de vinho espanhol, três palavras guardadas para o final e que talvez eu nem chegue a usar, um chiclete na bolsa e um resto de amor, que acaba antes do dia trinta e um; se eu tiver sorte.
  Um dia branco, porque nada me deixou frouxa, desestabilizada e nem deixou as minhas pernas não serem firmes; não jorrei comovida nem esperei passar das seis para chorar sozinha. Um dia branco, porque nem o esforço das lágrimas o dia quis de mim.

  Um dia branco atrás de um pôr do sol alaranjado, que só será, se fizer frio à tarde. Um dia branco que não é ausência, não é falta, não é vazio, não é o que eu não tenho, não são as músicas que eu não posso escrever para ele, não são os poemas que eu não vou ler, porque ninguém os publicou.
  Um dia branco, porque passa, mesmo que eu não possa dormi-lo inteiro, um dia cujas horas duram mais quando a minha bicicleta segue sem sobressaltos.
  Um dia branco desde o primeiro olho aberto até ao pôr do sol que não veio. Branco dia, noite alva.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, já é dia 7 de novembro deste fatigante 2017

Querida Amanda,

Ao ver o título, de uma maneira automática, me conectei ao Dia Branco de "Geraldo Azevedo". No decorrer da leitura, minha suspeita fortaleceu, a trajetória maluca da vida com este trem chamado ausência, essa dor que não para e não desencanta.
Viver é bom, mas dói prá caramba. Se a pessoa não está sentindo nada, pode ser que esteja morta e ainda não saiba.

Meu tempo anda curto, mas na medida do possível passo aqui e também lá no meu reino, que anda só ouvindo música por estes dias.

Um abraço

Paulo

Geraldo Azevedo - Dia Branco

Se você vier
Pro que der e vier
Comigo...

Eu lhe prometo o sol
Se hoje o sol sair
Ou a chuva...

Se a chuva cair
Se você vier
Até onde a gente chegar
Numa praça
Na beira do mar
Um pedaço de qualquer lugar...

E nesse dia branco
Se branco ele for
Esse tanto
Esse canto de amor
Oh! oh! oh! oh!...

Se você quiser e vier
Pro que der e vier
Comigo...

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 07 de novembro, deste inacreditável 2017

Querido Paulo,
já na primeira linha digitada, a música do Geraldo Azevedo também me veio à memória (não inteira, porque não me lembrava dela toda. E como é bonita! Obrigada por trazê-la aqui) e já pensei em voltar atrás. Afinal, o "dia branco" já tinha uma história, uma belíssima...mas não consegui (não tentei muito, é verdade) achar outra expressão que coubesse naquilo que precisava ser escrito. Resolvi seguir...

Sim, Paulo, viver é muito bom e doloroso. Não sei em que proporção cada coisa se arranja dentro da gente...mas vamos equilibrando...

Obrigada pela visita; é sempre um ótimo respiro...um café e uma conversa dá um colorido na pausa.

Abraços,
Ótima semana!