sábado, 28 de outubro de 2017

Duplo contrário

   São duas existências particulares. Transitam separadas, mas se irrigam numa mesma fonte. Díspares, opostas, discordantes, entrelaçadas por um fio flexível, embora permanente. Uma sabe da outra, mas viram seus rostos para tentarem a independência da própria identidade. Convivência conflituosa, simbiose inevitável e entranhada. Duas forças contrárias que se fortalecem e se aproximam, quanto mais distantes e extremas se mantêm.

  Da esquina oposta, duas pupilas catadoras entram nos recônditos do asfalto, dos bueiros, dos espaços estreitos e profundos entre o meio fio e a calçada. Gigantes e ágeis, elas espionam, perscrutam, contemplam as artes que nunca entraram em galerias. Anotam,  apreendem, aprisionam as partes soltas,  capturando o que os outros deixam cair: uma moeda, um nome apagado em um pedaço de papel, uma lealdade gasta, um quarto de pão dormido, uma desilusão amarela, um cigarro pelo meio, um sonho rasgado, um amor partido em cacos cortantes e muito pequenos. Ela recolhe cada perda, com o arame comprido e ímã na ponta; nada é definitivamente perdido. Junta, lava, esfarela, seca, passa, cola, reforça com pedaços de couro nas laterais, costura os remendos possíveis, com linha vermelha e ponto chuleado. Colecionadora de chances desperdiçadas, constrói um santuário de absolvição. O painel sagrado que redime, quem nem sabe que um dia matou.
  Já a outra, na esquina,  não vê nada, além das cores do semáforo. Perde o que é dela e não alcança o que é do outro.

  De um dos lados, uma interroga, investiga, desassossega, se não encontra mais de uma porta. Muda de lado, de crença, de estação no rádio, de canal de TV com o controle remoto. Muda o corte de cabelo, o candidato, a esperança. Tem insônia, sonambulismo e, por isso, muda sempre de cama, de quarto, até poder descansar, sem sonho, no próprio colchão. Sai na chuva, ao vento, enfrenta redemoinhos de camiseta e chinelo; se resfria, adoece e melhora com chá, mel ou xarope de agrião.
  A outra, usa sombrinha, agasalho e dorme sempre do mesmo lado da cama, porque tem medo de ter pesadelos nas mudanças. 

  Da margem do rio caudaloso e escuro, de cima da terra pisada e vermelha, uma mergulha, com coragem, e investiga cada objeto suspeito, desenterrado, mas que não flutua. Estraçalha correntes de algas com as pontas dos dedos, liberta heranças descartadas, assume os riscos da direção sem um feixe de luz. Ela nada no escuro, no silêncio, no frio,  transita pelas profundezas, sem pensar se acha o caminho da volta ou não. Solta o corpo no desconhecido, no vazio, no improvável. Depois, emerge da água barrenta, com as mãos sujas e pesadas do tesouro encontrado. Ela se entrega à profundidade sem ruídos, sem direção, sem luz alguma.
  Enquanto o duplo dela apavora e grita, antes da água alcançar seus quadris. Seu duplo contrário desiste todas as vezes em que chora, são muito salgadas as lágrimas dela e a outra bebe, não deixa que caiam sem serventia.

  Uma caminha, de cabelos soltos, roupa larga e nenhum tipo de provisão, para um destino misterioso, que compartilha com quem encontra: homem, mulher, criança, velhos. Arranca mais sensações do que olhares. Desperta os cães adormecidos, com o barulho das chaves penduradas no cós da calça. Arrebenta os cadeados que não têm chave que coincida com a fechadura.
  Já a outra, dirige um carro, com ar condicionado e vidro abaixado, cabelos presos; isolada do cheiro da rua, limitada entre quatro portas e uma direção automática que a comanda .

   A imagem invertida no espelho, queima, derrete e se integra em qualquer matéria, arrisca-se no fogo para salvar uma foto única e antiga. Memória material de alguém a quem não conhece, mas preserva, porque poderia. Engasga com a fumaça, desce as escadas que desabam; cada degrau depois dela, é cinza e nada. Abre as janelas, molha as cortinas, enrola os tapetes e enche os baldes com água, com a mão chamuscada alisa e contém o fogo que arde fora dela. Abriga os gatos, troca os vidros, conserta os degraus e varre as cinzas. Depois, replanta, troca os curativos dos queimados e sobrevive com a casa.
  Enquanto a outra, apaga a primeira chama com o pó químico do extintor na parede.  

  O duplo de uma ignora os classificados, mas lê todos os signos, todos os meses e não quer controlar nada nem ninguém. O duplo é uma feiticeira que responde ofensas com poesia e mantras indianos, não entra nos esquemas e inventa as próprias receitas de bolo. A outra é obediente às leis, às regras, aos passos marcados na areia, às faixas pintadas no asfalto.  Não pisa na grama, não quebra uma perna, não cai, mas também nunca dança. Nenhuma multa, nenhuma subversão de nada. É juíza de si e dos outros.
  O duplo contrário, escorrega, cai, se esfola, mas já se levanta, na hora seguinte. Nos joelhos que doem, gelo três vezes ao dia. Na corrida que parece nunca ter final, tranquilidade, paciência e contemplação.  Nenhuma é mais livre do que outra, menos triste, mais amada. São duas, num mesmo espelho, dificuldades, rejeições, projeções que se amparam e aprendem a amar o que rejeitam. As duas existências que coabitam uma mesma casa, desconhecem os desejos uma da outra, mas se sustentam na busca por cada um deles. Uma anda, outra ama. As duas, uma. 




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