segunda-feira, 30 de outubro de 2017

O vazio é um pássaro negro, melhor não dar um nome

  Tiro o tênis,  mas ainda não sei se fico. Tiro-os para refrescar um pouco e buscar raízes. Um pé firme no piso, sozinho, aprende a reconhecer se é seu o lugar.  O nível de intimidade que uma pessoa tem com qualquer chão é este: anda descalça nele?
  Os pés, aqui, no chão desta casa, ficam confortáveis, quase gelados de novo. O ar morno, a manhã modorrenta com o vento quente, deixa o corpo suado e a vontade melada de não fazer nada no domingo. Vai chover mais tarde, vi na previsão que aparece pela manhã no celular e vi no céu, enquanto voltava da corrida. Vai chover em alguma hora do dia, mas não parece ser agora. É a promessa que não fecha as janelas ainda, mas também não chama para ir lá fora de novo. É uma possibilidade de chuva que modifica os planos e alimenta o desejo de vê-la cair logo. Vou vinte vezes até à janela para ver a chuva que não virá.

  Enquanto espero chover, descasco a melancia, corto-a em pedaços pequenos, com cuidado para não deixar uma faixa da parte branca, muito espessa, porque atrapalha a mordida futura e o gosto da fruta, mas é importante, também, não desperdiçar, não deixar muitas partes vermelhas na casca e deitá-las fora, melancia com casca. Depois da perícia dos cortes, coloco-as na geladeira e vou mais uma vez até à janela.
- Acho que dá tempo para ir ao supermercado, antes da chuva. Meu domingo será dividido em: antes da chuva e depois da chuva. Mas a chuva não virá, eu adianto.

  Calço o par de tênis, conto as muitas moedas e as minhas poucas notas, procuro a sacola de pano, fecho as janelas e me lembro do guarda-chuva. Eu que não queria fazer nada no domingo abafado,  já corri, fui à padaria e agora saio para ir ao supermercado. No caminho, o inesperado me alcança. No intervalo entre uma música e outra, chama o meu nome. Eu que que já o esquecia, em meio a minha agenda bastante ocupada, nesta manhã,  agora sou perturbada pela sua voz familiar. Poucos metros de caminhada e o que eu espero ainda não veio, porque o céu não permite e o que eu esquecia, aparece para me acompanhar.  O vazio sem nome, chega em qualquer dia, com previsão de chuva até. Não se intimida com relâmpagos e trovões, não perde o meu endereço, tampouco o interesse na minha vida pacata. O vazio sem nome já é alguém da minha convivência mais estreita, embora o rejeitasse muito no começo, fui compreendendo as suas visitas. Chamou o meu nome e fomos juntos ao supermercado.

  Passamos pelas gôndolas, não fomos seduzidos por nenhuma promoção de domingo, de carvão, carne, sorvetes, também não comprei as cervejas que o vazio gosta e expliquei-lhe que no final do mês o orçamento é ainda mais apertado. O vazio é também compreensivo comigo e até sorriu, enquanto passávamos pelo caixa. Ajudou com a sacola, enquanto eu eu olhava para céu, esperando ainda a chuva.
  Quando o vazio vem, mudo os móveis de lugar; é um costume antigo. Repenso sobre as ruas que frequento, as pessoas com as quais me relaciono, o trabalho, a vida que acontece entre a segunda e a sexta-feira, as corridas, os lugares nos quais eu não fico descalça e aqueles em que eu queria tirar os sapatos, mas quase nunca entro. Arredo sentimentos há muito tempo no mesmo lugar e o vazio me ajuda a limpar atrás deles.

  Penso em passar na loja de conveniência do posto, quem sabe lá eu encontre algo para agradar o vazio? Não gosto que as visitas saiam sem nenhum presente meu. Atravessamos a rua e andamos atrás de duas mulheres loiras de cabelos escovados - pensei na chuva, de novo - vindas de algum evento importante, talvez missa ou culto, parecem mãe e filha ou tia e sobrinha, não sei. Com os seus saltinhos baixos e vestidos comportados de primavera, elas conversam e parecem tão integradas quanto eu e o vazio. De repente, a mulher mais nova aponta para o céu:
- Que lindo bando de pássaros, o que será que são?
  Os pássaros pretos quando não tinham nome eram mais bonitos. Era uma revoada negra, sintonizada e chamava a atenção da moça loira de vestido florido.
- São urubus, querida. Urubus.
Responde a loira escovada mais experiente; a racionalidade que organiza a ilusão da mais jovem.

  Urubu e o lixo, urubu e a morte, urubu e a miséria, urubu e a carne podre, urubu e tudo o que consumimos demasiadamente e descartamos, urubu e o cheiro ruim, urubu e os catadores de lixo, urubu e a cidade que ninguém quer ver, ainda que todos saibamos que existe, urubu e os pecados não redimidos, urubu e a maldição. Acabou a bela imagem de pássaros negros sobrevoando o parque da cidade.
  Às vezes não dar um nome evita uma morte ou descoberta para a qual não se está preparado. A palavra cria o mundo e também o destrói. Por isso nomear é definitivo; se tem um nome, existe. E se existe também pode acabar. Não chamar de amor, o amor, não o afasta, mas também não o enrijece num molde sufocante; não chamar um vazio por um nome pessoal não o manda embora, mas também não o prende dentro da nossa casa para sempre.   

Na loja de conveniência o atendente sorri e me pergunta, sem saber do meu nome:
- Precisa de  alguma coisa, moça?
- Uma aspirina, moço. Só uma aspirina.
Foi o único nome que não me faria chorar no domingo.
  Os urubus cheirando as cascas da minha melancia, agora, gelada, os urubus rindo da cara amarela que achou que eles eram pássaros negros. O vazio a quem nunca dei um nome, vai embora a qualquer hora entre o domingo e a segunda, talvez terça ou quarta, eu nunca sei ao certo o tempo da sua estadia. E a chuva não caiu do céu até a minha janela. O  inesperado chama meu nome entre uma música e outra e o esperado não chega no domingo abafado de urubus bailarinos.



Nenhum comentário: