terça-feira, 31 de outubro de 2017

Eu sempre estou de roupão quando batem à porta

   Eu não me preparei para recebê-lo, não soltei o cabelo, que estava num coque despojado, não esquentei uma água para o café, não varri a casa, não passei um hidratante nos lábios, não avisei ao porteiro que você chegaria, não pedi ao vizinho que deixasse a minha vaga na garagem livre, não aguei as plantas da varanda, não acendi um incenso de lavanda, eu não lavei o banheiro. Eu não me sentei à porta da sala às cinco, porque você chegaria às seis, eu não escutei David Bowie, enquanto fazia as sobrancelhas e depois lavava os cabelos. Eu não juntei o lixo, não arrumei os armários, não prendi o cachorro, eu não usei desodorante, não troquei de roupa,  mas você veio e eu eu me acostumei à sua presença, sem sustos.

   Eu não me preparei para que você entrasse na minha casa, não mudei meu horário no trabalho, não desmarquei um encontro com as amigas na quarta, não comprei a massa da qual você gosta. Eu não avisei aos amigos que eu dividia o apartamento, minha vida, meu corpo, não chamei um caminhão de mudança, nem paguei uma faxineira para lavar os cantos que eu não vejo. Eu não troquei de lado na cama, não pendurei os quadros que eu nunca pendurei, não guardei os livros em ordem alfabética, não aumentei a velocidade da minha internet. Não comprei um cão para tomarmos conta, não assinei um papel para me lembrar do compromisso, não vesti branco, eu não me lembro de chuva de arroz, mas fiz de você a minha casa e eu nunca deixei de limpar os meus pés antes de entrar.

  Eu não me preparei para gostar muito de você, não tratei os meus traumas, não fui à nenhuma sessão de hipnose, não me benzi, não joguei búzios, nem consultei  o tarô para saber se a entrega era demasiado arriscada. Não falei para os meus pais, não procurei seu nome no google, não busquei seu Lattes, não perguntei aos garçons dos bares que você frequentava quais as bebidas você pedia e se dava gorjetas, eu não quis suas senhas, não li suas mensagens no seu celular, não atendi o seu telefone nunca. Eu não perdoei os meus fracassos anteriores,  não desaguei no ralo do banheiro os meus rancores, não cobri com uma rosa tatuada as cicatrizes no meu peito. Eu não me cerquei de prudência, não usei colete à prova de balas, não pedi um colete salva vidas, eu só mergulhei e de uma vez molhei todo o cabelo.

  Eu não me preparei para os dias difíceis, para as diferenças de opinião, para os copos sujos na pia, para os compromissos que você esquece e eu sempre lembro, não li "Casais felizes enriquecem juntos", não assisti às comédias românticas de Hollywood, não imitei a Audrey Hepburn. Eu não marquei com uma terapeuta de casais, não falei sobre os nossos problemas com as minhas amigas, no intervalo do trabalho. Não perguntei à minha mãe sobre como ela e meu pai viveram tantas décadas juntos, eu não fiz uma lista de qualidades suas, quando o seu humor se tornou ácido, eu não me lembrei dos dias de felicidade quando eu comecei a querer ficar mais e mais tempo sozinha ou em companhia de outras pessoas. Eu não sabia nadar, mas continuei no mar, rezando baixo para que nenhuma onda viesse antes que eu conseguisse sair.

  Eu não me preparei para a tristeza da constatação de quanto mais eu o amava, mais eu me perdia de mim, meus olhos ficavam mais viajantes do espaço, minhas horas mais demoradas, minhas músicas mais silenciadas, minha voz eu não tinha. Eu não pintei o cabelo de loiro, não comprei um batom mais vermelho, não convidei ninguém para um restaurante novo, não enchi mais o meu copo. Não me matriculei numa aula de dança, não passei o final de semana na casa do meu primo em São Paulo. Eu nem dormi mais horas do que o costume; um dia acordei mais cedo e senti saudades da minha voz.

  Eu não me preparei para arrumar a mala, para avisar ao porteiro que não me entregasse as suas cartas mais, não tentei viajar por uns dias, não chamei de reavaliação o que eu não gostaria de atribuir uma nota. Não passei mais horas no sofá da sala nem comecei a dormir no quarto ao lado. Eu nunca demorei mais tempo para dar as voltas na chave, quando eu entrava, nem me apressei em desfazer as voltas para sair. Eu  quis que você continuasse a minha casa, mas a cada cômodo que eu descobria, menos detalhes eu via. Mudei-me com tudo, em um dia eu já estava desabrigada completamente.

  Eu não me preparei para querer amar de novo. Não criei nenhum perfil em redes de encontros, não resgatei histórias antigas, não pensei em novos rostos e outros nomes. Não soltei o cabelo, que estava num coque despojado, não esquentei uma água para o café, não varri a casa...
  Eu não me preparei,  eu estava de roupão, se lembra? E quando for embora, de novo, eu não estarei preparada, eu vou vestir uma roupa muito elegante para  sair e vou ficar em casa, sem o jantar, sem o final feliz. Eu estou sempre despreparada para atender à porta.




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