segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Da janela da cozinha, um cajueiro que parece vazio

  Da janela da cozinha o ar é outro; o vento passa, fala calmo uma língua que eu não conheço,  levanta as roupas dos varais das outras janelas, às vezes tenta arrancá-las da segurança das cordas, noutras só dança com elas. Vagueia pontual, preciso, mas não é nada burocrático; venta sem precisar carregar nada, venta por si e em si, sem antever a presença de qualquer alguém nas janelas.
  Ali, nos basculantes da cozinha, o tempo é mais lento, as vozes contam para ninguém, o silêncio não assusta, mas acolhe.  Dois passos depois da pia e um portal de vidros manchados captura almas intranquilas.   
  A janela da cozinha é a entrada para um outro universo, onde uma árvore de caju nunca dá frutos, mas perde as folhas todo outono,  num quintal largo, de onde as pessoas mudam com frequência e nenhum latido dura mais do que doze meses. A janela da cozinha é a minha intimidade em meio aos panos de prato, detergente, louça suja ou lavada, esperando ser guardada, onde o pensamento quando dói, chega suave, generoso, às vezes tenta me arrancar do portal, noutras só dança comigo.

   A janela da minha cozinha é feita para o quintal da casa da rua debaixo. Aliás, todas as janelas das cozinhas, acima do quarto andar no meu prédio, são viradas para o quintal com uma árvore frondosa e moradores sem raízes. Já vi tanta gente que viveu ali que possivelmente não sou capaz de me lembrar quantas foram, não arrisco uma lista. República de estudantes, casa de um morador só, famílias com cães, algumas com gatos e duas com répteis que eu nunca cheguei a saber ao certo o que eram, vazia, alugada para um escritório de contabilidade, vazia de novo, alugada para um buffet, um time de futebol juvenil e agora elas; só duas. Uma casa grande com um quintal bem largo e aberto para  duas moradoras.
  Mesmo que eu tenha curiosidade em ver o que se passa no quintal, eu não chego à janela se sei que alguém o ocupa. Respeito a intimidade de quem lá estiver. Mas vou muito à janela para tomar café, chá, às vezes um gim ou vinho, vou para olhar para nada, para fumar, bem às vezes, até para chorar eu vou. E nestas visitas, é comum que  alguém surja detrás do cajueiro e eu não me apresso para sair. Conheço o que se passa no quintal, quando dou os dois passos derradeiros depois da pia, não dá mais para voltar de alma vazia, depois que atravesso o portal.

  As duas moradoras da casa, eu conheci na fila do banco, só depois de alguns dias eu as vi no quintal. São mãe e filha. A mãe parece não ter trinta anos e a filha tem quatro, ela mesma me disse, no banco. Fez em abril.
- Já tenho quase cinco.
  O nome da filha eu sei, porque o ouvi algumas vezes na voz da mãe, o da mãe ainda não, porque só é chamada de mãe ou senhora, no dia que estivemos no banco.
  Ontem, eu estava na janela, enquanto passava o café e as duas chegaram, a mãe carregava um balde com roupas para estender no varal e a filha trazia os pregadores.
  A mãe estendia os lençóis floridos e a menina ajudava a esticá-los. Fechei a garrafa de café e voltei para ver as duas, quebrei a minha promessa de preservação da intimidade que acontece no quintal e em seguida, uma xícara. Deixei os cacos para juntar mais tarde.

  Depois dos lençóis, estenderam toalhas, dois vestidos, uma calça jeans e o uniforme da menina. Quando esticavam uma toalha de mesa, com estampas de girassóis,  eu vi a mulher enxugando algumas lágrimas, ao mesmo tempo em que a filha também viu.
  Os girassóis, o café quente, as roupas esticadas no varal, os cacos de vidro no chão da cozinha, o vento falando alguma coisa ininteligível, uma árvore com poucas folhas, sem frutos e a filha querendo saber do choro. Não é nada não. Talvez ela tenha dito, talvez não. Não dá para ouvir conversas amenas da janela da minha cozinha.
  A mãe abaixada, um abraço curto na filha, recolhendo o balde, entrando na casa, a filha passando as mãos na barra das roupas que ela alcança e seguindo a mãe, sem entender o choro. Vai crescer e a compreensão não ficará mais próxima.

  Eu não me lembro da minha mãe jovem, ainda que eu tenha nascido no ano em que ela fez trinta anos. Eu não me lembro dela aos quarenta, cinquenta. Minha mãe envelheceu do meu lado no sofá grafite, enquanto eu crescia. Para mim, minha mãe sempre teve esse mesmo rosto. Eu não sei se um dia, estendendo roupas, eu a vi chorar, se consolei, se tivemos uma toalha de mesa com girassóis; com abacaxis eu me lembro bem. Mas me lembro da minha mãe, chorando ao ouvir o rádio, antes de eu nascer e a minha irmã perguntando o porquê das lágrimas. Eu não conheci a minha irmã criança, mesmo que eu tenha nascido quando ela ainda não tivesse completado cinco anos. Minha irmã sempre foi adulta, porque é mais velha do que eu.

- Eu estou muito triste, porque uma grande cantora morreu hoje.

  Ver as duas no quintal me deu saudade da minha mãe e da minha irmã. Mas dessas duas que eu não conheci e me lembro sempre. Chorei o choro da minha mãe e da mulher no quintal, me consolei como minha irmã consolou minha mãe e a menina consolou a mulher, enquanto estendia roupa.
  Deixei a janela, engoli o último gole de café, recolhi os cacos da xícara e fui ouvir Elis Regina.Tive saudade do amor que não quer ver as lágrimas do outro, de estender roupas no quintal,  da toalha de mesa com estampa de abacaxis, do choro da minha mãe - que quase nunca chora -  e do afago da minha irmã  - que quase nunca chega a tempo de ver as lágrimas.

  Quando toca Elis eu me lembro do que eu nunca vivi: minha mãe ouvindo o rádio, as lágrimas escorrendo por um rosto jovem  e uma menina, pedindo para ela não chorar. Quando toca Elis, eu divido a cozinha minúscula com elas e sinto o amor quente que dura tanto quanto a morte da cantora. Quando toca Elis, eu me lembro que amar é também não ver, não ouvir e resistir em uma memória que é do outro, mas também minha. Quando toca Elis, eu penso  que aquilo que amamos nas pessoas nem sempre é o que é visto ou alcançado pelo nosso olhar de presença. Amar o outro também é uma questão de narrativa. Minha memória mais afetuosa chegou antes de mim.
  Me disseram que é um cajueiro no quintal, eu nunca vi um caju brotar.  Uma árvore que não dá frutos é ainda árvore. Um cajueiro sem caju não é um vazio.







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