sábado, 7 de outubro de 2017

Trinta bocas abertas e nenhuma palavra que seja minha

  Trinta portas para a rua, um molho de chaves e nenhuma se encaixa. Em cada fechadura, trinta opções de saída e nenhuma é real. Não saio daqui se não for pela janela, fresta nas paredes ou telha quebrada.
  Trinta poetas cativos em uma biblioteca que nem a luz visita. Trinta livros na prateleira mais alta, que ninguém se esforça para alcançar. Trinta almas desassossegadas punidas com o distanciamento do mundo. Para quê poesia, se não tem quem as lê?
  Trinta esperanças vazias, esperando um novo refil, uma sorte que aponte na esquina, uma nova promessa que chegue com o sol. Trinta cortinas de musseline, dançando com o vento da manhã, esperando a notícia.

  Trinta sonos intranquilos ao final de um mês, nenhum saldo para os próximos trinta dias; os sonhos não dormidos nunca mais terão a chance da cama. Há de se esperar novos, para novas noites.
  Trinta desconfianças, escondidas de vergonha pela incerteza. Se amo confio, logo não amo se desconfio ou confio e nem é amor.
  Trinta frios sem nenhuma blusa de lã; mãos geladas, peito vulnerável ao vento, a resistência na friagem deixa o corpo menor, ainda mais fragilizado.
  Trinta blusas e um calor de dezembro, guardar os casacos para o próximo inverno ou carregá-los pelo deserto que só acaba no final de março?

  Trinta álbuns de família e ninguém vem mais aos domingos; aperta os olhos para ler as indicações atrás de cada foto. De lápis claro, nomes de lugares, pessoas, eventos e, numa delas, uma frase de Manuel Bandeira. Numa das páginas, um grupo com roupas claras, levantando um copo, na outra, uma noiva com o sorriso forçado, depois, o aniversário de uma criança emburrada e na última página, fotos de uma figura cortada, alguém que não mereceu mais ser lembrado. Quem seria o misterioso na praia, na sala de uma casa em frente à TV, com um cão aos pés e do lado da mesma moça de sempre? Quem é a moça de cabelos pretos que arrancou do álbum da família uma desilusão?
  Trinta certidões e nenhum nascimento, casamento, nenhuma morte. Um cartório que registra o cachorro que ladra, um copo que cai, um acidente sem feridos, um telefonema da empresa funerária na hora do almoço.
  Trinta bombas numa guerra a qual nenhum soldado queria ir de verdade. São moços que fantasiavam com o heroísmo dos filmes, com a retórica das justas leis. Que lei é realmente justa?

  Trinta finais de semana e ele não vem mais. Desde o terceiro devia ter desconfiado, mas precisou de mais vinte e sete para entender que os sábados e os domingos não são de mais ninguém além de seus.
  Trinta sinais de que já haviam se distanciado, descumprido as promessas, rompido os cadarços tênues, mas a mesma cegueira para um fato ao qual se recusa ver, pode se repetir mais vinte e nove vezes. 
  Trinta vazios existenciais e um filósofo, procurando livros na biblioteca; não olhando para o lado, não ouvindo as lamentações, não segurando mãos e não compreendendo o que é ser gente.

  Trinta promessas não cumpridas de uma nova conduta; só mais esse ano que eu vou tentar, só mais esse número que eu vou arriscar, mais essa desistência antes do final, só mais esse copo e vamos para casa.
  Trinta realizações não prometidas; um novo corte de cabelo, uma casa recém pintada, um blues feito na madrugada de quarta-feira, um perdão, antes de apagar o abajur.
  Trinta escolhas ameaçadas pelos conselhos de alguém a quem se respeita, pelo bom senso, pela opinião da maioria, pela influência das pesquisas do Ibope.

  Trinta músicas melancólicas e uma cantora de voz grave, que não erra nunca o alcance da nota. 
   Trinta danças sem a última parte da coreografia, interrompida por um passo imprevisto, que não cabia no justo espaço entre os dois bailarinos.
  Trinta alunos enfileirados, em uma sala de tacos soltos no chão e desenhos de papai Noel em folhas de seda para a professora, em pleno outubro.
  Trinta alegrias de desconhecidos, que contagiam e por um minuto nos coloca em comunhão, numa impressão de pertencimento ao coletivo e à alegria que ele invoca.

  Trinta bilhetes em cima da mesa e em nenhum eu li o que eu buscava. Trinta papéis amarelos dentro de um bloco sem folhas em branco e nada se identifica com  aquilo que eu quero dizer agora.
 Trinta painéis atacados em um museu, porque os corpos estão nus e ninguém mais suporta uma vida sem máscaras, sem  polêmicas falsas, sem oportunismos.
 Trinta bocas abertas e ninguém fala nada que eu possa compreender esta noite. Trinta línguas que só sabem o português e nenhuma palavra que seja minha; que eu quisesse falar ou ouvir.


2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 19 10 2017

Prezada Amanda,

30 vezes interessante a provocação pela impaciência da protagonista. Metódica, escolheu um número que transmitisse sua ira, suas mágoas, suas angústias ... suas trinta lágrimas de maneira que a todo momento pudesse retornar ao ponto mágico - o trinta, o segredo guardado dentro de trinta segredos em uma só vida.

Ficou bonito!

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 21 de outubro de 2017

Querido Paulo,
que bom que achou bonito. Grata, sempre, pela leitura e pela delicadeza das suas partilhas tão sensíveis.
Abraços,
Amanda