quinta-feira, 16 de novembro de 2017

O tapete verde da porta de entrada

   Depois que eu dei a última volta na chave, depois que eu amarrei o cabelo, depois que eu entendi que eu não tinha mais nada do outro lado da porta que eu acabava de fechar, depois que mergulhei no escuro do nunca-mais-aqui e chamei um motorista para buscar minhas duas malas, eu quis chorar. Não era dor, não era medo, não era o peso das duas malas com tudo o que eu tinha no apartamento -  que é quase nada - dentro. Era o abandono voluntário do incômodo das correntes que eu não entendia quando comecei a arrastá-las, era alívio, era também lamento. Eram lágrimas de passagem, abertura de caminhos, desfecho sem testemunhas. Aliás, grandes tristezas precisam de espaço, de um par de olhos que mira-as por dentro, não de fora.
  Depois que eu desci as escadas e tirei as duas chaves das portas de entrada do prédio, do chaveiro com a Torre Eiffel e as devolvi ao porteiro, eu senti que entregava um tesouro que nunca me pertenceu. Então, eu entrei no carro e não tive mais lágrimas nem vontade de choro. Eu tinha outro lugar, um endereço do qual eu ainda não tinha decorado o cep, mas tinha um tapete que alguém deixou na porta de entrada.
- Será esquecimento ou herança ofertada de mudança?

  Em cada casa que eu morei, acho que em todas elas, eu sempre encontrei uma espécie de souvenir deixado pelo antigo dono. Minha mãe todas as vezes em que via algum destes objetos esquecidos, jogava fora ou devolvia ao síndico, porteiro ou zelador, tinha uma superstição de que os objetos podiam carregar energias ruins.
- Quem depois de se mudar deixaria más energias grudadas num pote, num prendedor de cabelos, num vaso de planta seca?
  Se eu chegasse antes dela, eu sempre guardava. Era o meu presente de boas vindas. Energia nenhuma me negou a alegria de estabelecer uma conexão com o antigo morador da casa que, agora, era minha. Era um presente dele para mim.

  Agora, tenho um tapete. É bonito, até. Talvez não fosse exatamente um modelo que eu escolheria numa loja de tapetes, porque é oval e eu, geralmente, escolho tapetes retangulares para ficarem mais colados à porta e é verde, que é uma cor que  nunca é uma primeira opção.
  Tenho um tapete na casa que eu ainda não moro, estou num carro sem chorar, subindo uma rua que ainda não é completamente familiar,  levo duas malas e um chaveiro sem chaves, só uma torre desgastada, descascada, que talvez eu devesse ter abandonado no apartamento que eu acabei de deixar para trás, junto com um futuro, uma desilusão e um sonho que eu não sabia como carregar.

  Estico um pouco as pernas antes de descer, treino-as firmes dentro do chão do carro, para ter certeza de que não falharão quando eu saltar, estão em um estado novo agora, numa liberdade, quase errância, e poderão levar-me ao chão se eu não mantiver alguma vigília.  Escolho o pé direito para dar o primeiro passo e fico preparada para o salto.
-  Sim. Estou pronta. Au revoir!
  O motorista abre a porta, mas antes que eu a segure, ele a deixa se fechar de novo em cima da minha mão, eu grito, abro a porta, me atrapalho com as pernas e o meu primeiro pé a chegar ao chão é mesmo o esquerdo. A vida nos leva a fazer toda a sorte de planos, nos orienta a sonhar e fazer dos doces sonhos, planos firmemente traçados, mas uma porta se fecha antes da hora, um dedo apertado lateja, um grito sai e, de repente, a vida é essa bagunça de planos desfeitos na porta de um prédio do qual eu nem sei o cep ainda.

  Desço com alguma dignidade, o motorista me pede desculpas, mas acontece que hoje não há culpas. De ninguém é a culpa, tudo é o instante que tem que ser, que o destino possibilitou acontecer ou não.
- Imagina, não é sua culpa.
  Não é minha também, não foi uma falta de vontade, de vigilância, de entrega, nem amor faltou, que eu sei. Não da minha parte e de nenhuma outra, até o porteiro daquele prédio eu amava, a síndica, a vizinha que dava festas toda vez que eu precisava acordar cedo. Amei tudo e a todos, talvez quase tudo e a quase todos. Amei-o e amei o amor que ele tinha para mim e o que eu tinha também. Mas nos mudamos, antes de eu esvaziar o apartamento e de ter um endereço, eu já não morava mais lá; e essas foram as correntes dos últimos meses.

  O amor mantém as marcas do outro na nossa vida para sempre, mesmo quando nos mudamos um do outro; a paixão mantém-nos num espaço mínimo, completamente entrelaçados, sem nem sabermos que perna é a nossa ou que passo nos pertence, por algum tempo; mas são os sonhos que atam uma relação, que dão substância e possibilitam raízes saudáveis a ela. Mas os sonhos também variam de tessitura e longevidade, alguns duram mais do que a própria decisão de realizá-los. E ficam espalhados pela casa, escondidos nas gavetas, grudados nas teias de aranhas, nos cantos, detrás dos quadros, sobre portas ou basculantes, são esquecidos porque estiveram sempre distantes, foram projetados para fazerem as raízes se abastecerem de nutrientes básicos, por um longo tempo, e mais nada. Outros duram um quase nada, uma viagem, um carro, um filho concebido e as raízes se alastram muito rapidamente e vívidas, para depois, definharem até sucumbirem. 

  Meu tapete verde está na porta, subi decorando o cep, já posso pedir que me mandem correspondências. Giro a chave na nova porta e abro um sonho que me acompanha, sonho que é meu e me mantém longamente vívida. Deixo as malas no chão, abro uma janela que me mostra  a rua e estico minhas raízes.
   A constatação aterradora, primeiro, e depois libertadora,  de que o outro não é a minha resposta e, mesmo que eu quisesse muito, me esforçasse inclusive,  eu não sou a resposta  dele. A minha resposta nunca foi  única, definitiva e incontestável e eu também não serei essa resposta na vida de ninguém.
  O sonho ficou na sala do apartamento vazio, abandonado debaixo da janela, no quadrado iluminado que um dia foi o mais feliz desta cidade e de qualquer outra no mundo. A herança pode doer, mas pode também encher de esperança. Que o próximo casal, os moços, as moças ou a pessoa sozinha que tiver a chave do 701, o encontre e queira cuidar dele. O sonho que ficou no apartamento é o meu tapete verde de boas vindas ao novo morador.







2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 16 de novembro de 2017

Carta à Querida Amanda,

" a vida é essa bagunça de planos desfeitos" ...

Hoje eu estava lendo um texto que escrevi, que tem seu comentário riquíssimo e minha resposta minimalista, incompatível com a sua percepção - Versos no Luiz XV. Li por que aqui no seu blog com certeza também ocorre isto, uma pessoa lê, e de repente há um tanto de gente lendo, ligando ciclano a fulana na vida real deles e aparece aquele monte de leitores black friday (só uma vez por ano). Em função disto fui ler novamente e agora fecho o dia diante desta crônica de uma morte anunciada, com direito a dor na mão.

a vida é essa bagunça de planos desfeitos
a vida é essa bagunça de planos desfeitos
a vida é essa bagunça de planos desfeitos

Jó amava a Deus, era rico, filhos e filhas apaixonantes, esposa fidelissima. Um dia o Capeta participou de uma plenária no céu, conforme consta no primeiro do Livro de Jó.
Deus disse - olá capeta, tuuuuudo beeeemmm???
Capeta - salve salve, Divindade Divina
Deus disse - o que tem feito? Porf onde tem andado?
Capeta - Dando umas voltinhas por aí
Deus - Vistes meu filho Jó? Quanta alegria, quanta paz, quanto dinheiro, quantos orgasmos, etc.
Capera - O senhor ,e desculpe, mas também pudera, abençoou tudo, não tem neguinho que não regozija.
Deus - então duvida?
Capeta - duvidar não duvido, mas tira tudo dele e vê se ainda te ama.
Deus - hummm, melhor que não faça, sabe como é ... Tire você e verá que um filho meu não foge à luta nem teme quem te adora.
Capeta - Caramba, então está então

a vida é essa bagunça de planos desfeitos
a vida é essa bagunça de planos desfeitos
a vida é essa bagunça de planos desfeitos

Jó somos nós, nossas dores e a nossa voz.

Vá, Amanda, tua fé te salvou!

Paulo







Amanda Machado disse...

Minas Gerais, quase fim do dia 17 de novembro, de 2017

Querido Paulo,
não há incompatibilidade de respostas...minimalista ou maximalista...elas são o que podem ser, na hora, com os recursos que temos no momento... "non, je ne regrette rien...c'est payé..."

E como bem você mesmo disse, na urgência da vida "real" (e aqui também não é? Talvez daqui a um tempo essa discussão já esteja completamente ultrapassada...e real e virtual não sejam mais antagônicos) às vezes, é preciso ser sintético, mesmo querendo demorar mais no café. As minhas respostas às suas gentis cartas é que devem estar bem aquém do merecimento do destinatário. Mas nos perdoamos, porque nos entedemos...rs

Adorei a versão de Jó!Fez-me ainda mais alegre hoje.
Vamos então, porque a vida é isto mesmo: essa bagunça de planos desfeitos.
Abraços,
Um ótimo final de semana