- Eles estavam tão felizes na foto. Tão bonitos.
A cada página virada, uma felicidade diferente estampada, os olhos sempre ficam. Hoje, as pessoas parecem outras: os cabelos, as unhas, as maçãs proeminentes no sorriso já não existem, mas os olhos ficam; ficam sempre. As fotos são de um dia em que eu não estive, não podia ainda estar, mas eu sei narrá-lo completamente. As poucas imagens me ajudaram a construir um dia em que eu não estive. Do temporal que caiu, só sei pelas histórias que contam e por um áudio que eu ouvia quando pequena, os trovões que abafavam a voz do homem ao microfone. O que dura mais: uma foto ou um dia de felicidade?
Em frente à padaria há um outro casal, esse totalmente desconhecido, mas que me faz lembrar do álbum. São sete da noite e a mulher se prepara para deitar, eu a acompanho de longe, numa intimidade impossível, mas aberta. Ajeita um garrafa térmica, uma sacola abarrotada e uma mochila amarela no degrau da porta de uma loja fechada, senta-se ao lado do homem que já se deitou e puxa um cobertor até o tórax, se deita, levanta a tampa de papelão e, antes de se cobrir, confere se o companheiro está bem abrigado, abraça-o e, depois, como uma ostra na concha, se fecha embaixo do papelão.
A mulher é a última a se deitar. Na casa do álbum de fotos também era. Cuidadora, protetora, ajeita os detalhes ao seu redor antes de ir dormir, organiza e se assegura dos desfechos de um dia, preparando-se para a manhã do próximo.
Eu já os vi outras vezes, talvez já tenhamos tido uma dezena de encontros. Nos últimos meses, eles têm dormido do outro lado da rua da padaria. E eu tenho trazido o cão para os nossos passeios diários, um pela manhã e outro no início da noite. É uma das ruas mais calmas do centro da cidade: mais casas, poucos prédios e pequenos comércios. O cão passeia sem sustos e eles parecem descansar com alguma tranquilidade.
Há entre os objetos e as caixas de papelão do casal um ambiente incrivelmente doméstico, embora não seja ocultado por paredes. Conversam, discutem, sorriem, bebem, comem, fazem afagos um no outro, enquanto as pessoas da cidade passam com os seus pés a poucos metros das suas cabeças. Quase sempre os vejo indo dormir, mas nunca os assisto despertarem, desconfio que fazem isso antes das seis da manhã, para liberarem a porta da loja e não serem acordados pelo trânsito intenso antes das sete.
Seus objetos pessoais, seus hábitos alimentares, de descanso, de higiene e sua sociabilidade familiar são tão expostas, tão visíveis e, mesmo assim, parecem completamente libertos dos olhares alheios. Suas vidas, amiúde, transcorrem tão naturalmente e sem formalidades ou sob a justeza da vigilância, que desconfio que realmente não são vistos ou são bem pouco percebidos.
Não sei nada sobre eles durante o dia. Não sei sobre os lugares que frequentam, se almoçam, se têm amigos, onde tomam banho, se vão ao médico. A mulher pinta o cabelo, disso eu sei, não sei com que frequência e nem onde retoca as raízes dos seus fios loiros. Mas conheço seus sonos e essa é uma intimidade que me fascina. Tão vulneráveis, ambos, tão entregues e relaxados, que às vezes me emociona, noutras me preocupa demasiado. Entre o papelão, com o qual se cobrem, e a rua, uma finíssima camada; entre a cabeça deles e os passos de desconhecidos ou as rodas de um automóvel, apenas centímetros de distância.
Terão um álbum? Que os inventará, numa tarde, sem uma foto? Quem narrará um dia de felicidade sem os registros que apoiem o enredo?
Sou eu quem devo preservar a história de ambos? Como posso fazê-lo? Inventar um dia em que eu também não estive ou fotografar este onde estou? Como apontar uma câmera sem ser percebida? A quem entregar a fotografia para que se lembre depois? Os dois jovens, os dois felizes. Uma cozinha de azulejos amarelos com um fogão ao fundo, terão tido ou ainda terão, numa foto? Um filtro de água, copos de vidro, um tapete para colocarem os pés descalços ao se levantarem da cama, existirá?
A vulnerabilidade dos seus destinos na calçada e a estreiteza das minhas possibilidades de fotografá-los, ambas expostas, mesmo que ninguém as veja.
Outra noite, outro passeio com o cão. E, a mulher, de novo, é a última a se deitar. Seus cuidados, seu zelo com os objetos que rodeiam o seu lar e a proteção com o companheiro que é parte da sua casa possível. Prende o cabelo com o elástico vermelho, senta-se ao lado do seu homem, estica o cobertor e, depois, o papelão - suas cortinas. Passo por ambos e vejo o topo das suas cabeças, que está descoberta, porque o papelão não é grande o suficiente. O topo amarelo da cabeça dela e a dele com os fios de cabelo tão curtos, que fazem seu crânio parecer com uma jaca. É uma intimidade da qual eu não posso escapar, eu velo o sono de desconhecidos, os quais eu gostaria de presentear com um álbum para que a filha deles um dia os visse jovens e felizes.
Continuo a andar e posso ver a sola dos pés dos dois. O pé pequeno dela, com a sola escurecida, completamente nua e os pés dele, grandes, talvez do tamanho dos meus, cobertos com um par de meias azuis. Como podem sonhar tão expostos?
Às vezes, quando me deito, sinto uma friagem entre os cabelos no topo da cabeça, uma vulnerabilidade, como se olhos desconhecidos pudessem alcançá-la e, por isso, uma angústia noturna me visita, só pela possibilidade de não estar tão protegida, a minha intimidade, como eu gostaria. Depois, na sola dos meus pés, o vento frio do quarto sopra e eu enrolo o cobertor um pouco mais nos calcanhares e os protejo. Só pelo medo de não estar suficientemente guardado o meu sonho mais recôndito. O sono se atrasa, me levanto, busco os chinelos no tapete próximo à cama, vou à cozinha e bebo um copo com água, até me sentir plena de liberdade sob as paredes mais espessas do que o papelão. Como alguém pode sentir-se mais livre sob um teto e paredes tão juntas?
Quanto dura o que ninguém vê? Uma felicidade é fotografável ou a simulação dela é que é? A história de um casal sem paredes nem álbum, quem poderá perpetuar?
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